quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Cadernos do Oriente

O jumento de Ghizhou

(Liu Zongyuan – 773-819, China)

Não havia jumentos em Guizhou, até que alguém pôs um num barco e o transportou para lá. Porém, não sabendo bem o que fazer com ele, deixou-o solto nas montanhas. Um tigre, ao ver aquele bicho disforme, pensou que fosse um ser divino. Primeiro, bem escondido, observou-o atentamente. Depois ousou aproximar-se, mantendo ainda uma respeitável distância.
Um dia o jumento zurrou. O tigre se assustou e, com medo de ser mordido, fugiu apavorado. Mas voltou para dar mais uma olhada e decidiu que a criatura, afinal, não era assim tão temível. Acostumando-se com os zurros, chegou mais perto. Já colado praticamente no outro, e agora tomando muitas liberdades, o tigre passou a azucrinar o jumento com repetidos avanços. Esse, enfim, perdendo a paciência, deu-lhe um coice.
“Ah, pois então é só isso que ele consegue fazer”, pensou o tigre entusiasmado que, ato contínuo, pulou sobre o jumento, cravou-lhe os dentes no pescoço, devorou-o o quanto pôde e prosseguiu o caminho.

Pobre jumento! Seu tamanho lhe dava uma aparência de força, seu zurro inspirava medo. Caso ele não tivesse mostrado tudo de que era capaz, o tigre, apesar de tão feroz, provavelmente não teria se arriscado a atacá-lo. Mas tal foi, lamente-se, o intempestivo fim do jumento.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

Insomnia

Toda noite era assim, mal postava a cabeça no travesseiro e já encontrava Morfeu….

Uma noite foi diferente, esperou, esperou e o sono, sempre tão certo, não veio. sem experiência, não sabia onde buscá-lo, só sabia que, no dia seguinte, às seis da manhã, tinha que estar de pé. Ocorreu-lhe então experimentar a mais popular das receitas: contar carneirinhos. Contou e dormiu….

e sonhou que carneiros furiosos a perseguiam.


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“Todos somos locos,
los unos y los otros”.

Quevedo

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Molière, o impostor!


Molière impostor, quem diria? Bom, aparentemente muita gente, pelo menos é o que diz um artigo que acabo de ler na revista ‘Magazine Littéraire’, n. 433. As maiores peças de Molière não teriam sido escritas por Corneille? O debate nem parece novo, Pierre Louys já tinha levantado a hipótese baseado numa intuição em função das semelhanças de estilo, de língua e de situações.
Hoje um historiador, Pierre Boissier, volta ao antigo tema e vai ainda mais longe que seus predecessores, afirmando que Molière nunca escreveu uma única peça em toda a sua vida. No seu livro l’affaire Molière, o historiador trata Molière como ‘Le comédien’ (o ator) e nunca como escritor. Os fatos são, no mínimo, perturbadores – diz a revista – pois Molière trabalhou em inúmeras peças de Corneille e foi quando este parou de escrever que o talento de Voltaire desabrochou.

Apesar da séria documentação já levantada, alguns consideram que ainda é cedo para se tirar conclusões. Por que Corneille teria feito isso sem deixar nenhuma pista, uma confissão, uma carta que pudesse ser lida depois de sua morte? É uma questão importante a ser respondida, acredita o autor do artigo.

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“These words I write keep me from total madness.”

Charles Bukowski

sábado, 4 de dezembro de 2004

Cenas repetidas

Atlanta 8 de junho de 2004

Entre Atlanta e Nova York


Sob a ducha ainda pensei que essa era uma vida das mais estranhas, em menos de seis meses estava eu ali de novo, dizendo adeus a mais um apartamento. Branco e vazio. Adios Atlanta! A água daquele chuveiro lavava-me pela última vez, pela última vez, uma hora depois eu fecharia a porta daquele apartamento, meia hora depois eu abraçaria Aufra esperando que não fosse a última vez e depois percorreria a highway que nos levaria ao aeroporto. Pela última vez, talvez. Talvez não.
Agora, triste e confessional, contemplo ora as nuvens, ora o grafite deste lápis que desliza na folha. Uma aeromoça nervosa e apressada serve-me uma água com gás e recolhe de má vontade o pacotinho de pretzel que eu recusei. Em alguns instantes Nova York se apresentará num relance, entre um aeroporto e outro. Bye! Bye! A outra aeromoça – longa, de unhas também longas (coitada!) – serve com menos pressa. Mas essa não caiu para mim. [Aprecio o grafite no papel]
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[La Guardia airport to JFK]

O nervosismo das grandes cidades. O motorista que nos leva de um aeroporto a outro se aposentará dentro de 54 dias – é o que diz o cartaz postado no painel do ônibus– nem por isso ele está menos irritado, passou um sabão em todos os que se levantaram das poltronas antes da hora. Antes disso já tínhamos suportado o humor tenebroso do rapaz que conferia os bilhetes, irritou-se porque algumas pessoas (eu e P. inclusive) estavam entregando o seu bilhete e o dos acompanhantes ao mesmo tempo. (It confuses me! It confuses me!)Disse e repetiu num inglês muito interessante. Eu ri muito, sem disfarçar. Tanto nervosismo é hilário. É interessante como algumas pessoas levam tão a sério a vida, os bilhetes, as horas, todas as regrinhas. Tudo que é sério demais é risível.

Aeroporto JFK – Espera de mais de três horas – Compro The New Yorker, tomo café…..Singapore airlines me oferece uma orquídea.
No avião, pedaços de filme. Sono.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Deus [Teresa Filósofa]

“Deus parece tão fraco na religião cristã que não pode reduzir o homem ao ponto que gostaria: ele o pune pela água, em seguida pelo fogo, o homem continua o mesmo; ele tem um único filho, ele o envia, contudo os homens não mudam em nada. Quantas coisas ridículas o homem atribui a Deus!” [P.96]

Em: Teresa Filósofa

Anônimo do século XVIII

Um dos maiores clássicos eróticos da Literatura Mundial
L&PM pocket

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

O longo caminho entre Bruxelas e Budapeste

[Esse é um diário meio esquisito, de uma viagem meio esquisita de três pessoas esquisitas ou em um momento meio esquisito.]

15/07/2004


[Bélgica]
Humores alterados. P. terribilis. Malas rápidas. M. sem trousse de toilette, só escova de dentes. Vai sobrar pra mim!
Única voz no carro, Otis Taylor, Truth is not fiction. Não? O caminho será longo, entretanto, mas a citröen é très confortable e os discos são muitos. O grafite (esse que que desliza na folha) pode acabar e o apontador ficou esquecido em cima do escritório.

Um exercício bom de se fazer em viagem é pensar numa cidade e deixar que algo relacionado a ela venha naturalmente.Poderia propor o joguinho a M. e P., quem sabe o clima não melhora? Ou piora? Por exemplo:
Praga=Kafka,
Barcelona=Gaudí,
Viena=Freud,
Dublin=James Joyce e assim vai.
Algumas cidades se prestam mal ao exercício pois são tantas as coisas que vêm ao espírito que não fica nada em específico: Londres, Paris…
Budapeste é engraçado, a primeira coisa que me veio à cabeça foi Chico Buarque e depois Paulo Rónai. A ordem deveria ter sido alterada mas não é um exercício que deva depender da razão. A atualidade falou mais alto.

15 horas [Bélgica ainda]
Coníferas e nuvens. P. de bode ainda. Mesmo disco.
15:30 – Alemanha
M. reclamou que o disco já rodou muito tempo. Agora com vocês Marisa Monte, primeiro disco. [I heard it trough the grapevine….]
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Now, CCR (Credence Clearwater revival).

Now The Kingston Trio.
P. soltou uma frase, disse que a França está logo ali, atrás da Forêt Noire, l’Alsace.

18:40 Como criança que está aprendendo a ler, leio todas as palavras em alemão que vejo nos caminhões, placas….e P. tem que dizer se a pronúncia está certa. Deve ser chato pra ele.
Passamos por uma Trabant e P. se entusiasma. Nostalgia do Oriente.

19:30 Baviera – Parte católica da Alemanha.
A questão de ordem é: que campo de concentração visitar?

Parada para um sanduíche frio e sem graça. O meu é constituído de queijo, presunto, 1 rodela de pepino e uma folhinha de alface.
Rosenheim – a cidade da alemã do filme Bagdá Café. Aqui vamos dormir num hotelzinho simples e limpinho.
Dia 16
9:30 terminando o café da manhã: pãezinhos quentes, queijo, presunto, suco (?), café com leite.
Aqui, as torres das igrejas cristãs me fazem pensar em minaretes.

10:30Áustria – Salzburgo. Visita relâmpago. Havaianas nas vitrines a 20 euros, 25 com bandeirinha brasileira, 30 com plataforma.
Visita a igreja de estilo barrôco.

14:10 Caça ao almoço, tarde demais para os padrões austríacos. Somos servidos de má vontade.Pizza (Pizzera Rimini). Procurando pelos toilettes, quase fui dar nos quartos dos proprietários. Estamos em Linz, cidade onde Hitler nasceu.
Enquanto como, lembro-me que Hund é cachorro em alemão, é o nome do cachorro mecânico em Farenheit 451.

15:00 passando pelo Danúbio que, Segundo M. está mais para verde do que para azul.

M. escolheu visitar o Campo de concentração e extermínio de Mauthausen. (Memorial). Não tenho vontade de comentar, nada pode dar a dimensão de um erro tão grande, nem mesmo a visita a este campo agora limpo e preparado para os curiosos ou os que querem preservar a memória ou os que tentam entender. Eu também tento entender, também penso que a memória deve ser preservada para que os erros do passado sejam evitados. E são? Os americanos se gabam de que ajudaram os europeus a vencer o nazismo, por exemplo. Sei lá…tudo é triste.
Outra coisa terrível: acreditei que eu não fosse capaz de entrar numa camera de gaz. E fui.

Perto de Viena, uma lavoura de girassóis.
[Luiz Gonzaga nos diverte]
Cansados, nos concentramos num filme francês na TV5. (bosta de filme!)

17/07 VIENA
10:00 café da manhã. Eu e M. não entendemos nada do cardápio, deixamos que P. escolha. Feito crianças.
Eu e M. visitamos o Museu Leopold: Anton Kolig, Herbert Boeck, Hans Böhler, Robert Kohl, Jean Egger, Egon……

Visitamos o centro da cidade. Meus pés doem muito e páro para ver esses espetáculos bobos na rua: gente pulando, se fazendo de estátua… aqui, como não poderia deixar de ser, temos muitos Motzarts. Um casal aproveita a lua de mel para apresentar show de equilíbrio e dança….

Noite: Jantamos num restaurante italiano. Cedo para ir dormir mas temos que tentar pois amanhã tomamos o trem antes das seis da manhã para Budapeste. Faz calor e eu me esqueci das sandálias. Devia ter comprado uma daquelas havaianas.

Domingo em Budapeste
18/07 Levantamo-nos às 5:30 e tomamos o trem para a Hungria. Tivemos que deixar o carro em Viena e tomar o trem porque o seguro não inclui a Hungria.
No caminho, campos e campos de girassóis, milharais…Ao meu lado um cara redondinho, todo vestido de preto, dorme e ronca.
Já fomos controlados 4 vezes: 2 vezes o passaporte e duas vezes o bilhete.
8:40 Paramos em Györ, muitos passageiros sobem, temos duas novas companheiras, uma garotinha e a mãe. Vou prestar atenção na língua.
O Danúbio agora é Duna e o euro não é usado por aqui.

15:30 Visitamos, almoçamos, agora descansamos deitados na grama em frente ao Hotel Four Seasons, um prédio magnífico. E rimos. Muito calor. Lindas americanas em flor, deitadas ao lado, também riem.
Depois do descanso visitaremos Peste. Músicos tocam sob o sol terrivelmente quente, P. deitado na grama, dança o pé. Um rapaz, do outro lado da rua dança animado e bate palmas, aproveita o ritmo e bate na bunda de uma moça do grupo que leva um susto. Os meus, agora dormem. A música lembra os filmes de Kusturica, sobretudo Black cat White cat.
Peste. Festival de Cinema Húngaro, em frente ao parlamento, dois telões. Eu e M. assistimos a uma parte do filme em preto e branco e em Húngaro. Ninguém ri.

A noite voltamos para Viena, pegamos o carro e vamos procurar um hotel na Estrada. Só encontramos um às três da manhã, ainda na Austria.


12:20 Atravessamos Munique (Münch)
Almoço em Ulm (15:18)salada. Visita a igreja/mosteiro. Crianças italianas contrariam a ordem e pegam as moedas de um mendigo que, ajoelhado, estendia o seu chapéu. Não resta outra alternativa ao pobre homem senão rir daqueles capetinhas….os pais aparecem irritados e envergonhados. Isso não nos impede de rir.

Caminho: vaquinhas brancas, rolos de feno, reatores nucleares.

Home sweet home.


sábado, 27 de novembro de 2004

Silêncio

[Este conto foi escrito para a Anjos de Prata e foi baseado no perfil de uma colega do curso de Letras]


Agora está tudo pronto, já vendi a moto e comprei o que precisava. Já reuni, inclusive, a coragem. Eu quero o silêncio, só isso. Você vai se assustar, não, mamãe, vai se assustar com isso de eu querer o silêncio. Justo eu que botava a esguelada da Janis no máximo. Quem a chamava de esguelada era você. Pois é, mamãe, acabou. Quase. Quando você chegar da sua viagem, tudo estará acabado. É triste mas é assim e não é culpa de ninguém, só desse demônio que me ronda. É simples, eu não nasci para viver, fui carregando até aqui mas não dá mais. Até parece desprezo para com o seu esforço hein, mãe? Você que me disse tantas vezes que eu te devo a vida….mas, honestamente, eu nunca me senti devedora, eu nunca gostei do mundo, eu não pedi nada, eu não existia quando você tomou a decisão. Quem existia era você e sua vontade de ser mãe, de gerar um ser que cuidasse de você na velhice, que te desse netos, que falasse doce, que fosse uma mulher moderna mas não excêntrica e eu vim assim, estranha, parece que vim para te contrariar. Sinto muito, dona Gertrudes. Netos? Ainda que eu gostasse de homem – e você já sabe que não - ainda que eu gostasse, eu nunca ia gerar filhos, never, ever. Como, se não sei cuidar nem de mim? Não, não tive filhos para não deixar-lhes a herança da miséria humana. É assim mesmo a tal da frase?

Eu estou aqui (e quando você ler isso será ‘eu estava aqui’. Engraçado isso de escrever pensando que, quando você estiver lendo estas linhas o presente já não será mais presente. Raciocínio besta, é claro que não, ainda que eu, porventura estivesse viva quando esse papel caísse nas suas mãos, ainda assim, esse momento não seria presente. Ai, acho que já bebi demais, mãe. Mas eu não pretendo estar viva quando você estiver lendo, por isso eu poderia escrever o que quisesse, mas eu tenho um coração, mãe, tenho sim e estou morrendo de pena de quando você chegar e deparar com a minha carcaça ali ou aqui, ainda não escolhi. Não tem outro jeito, não sofra demais.)então eu estou aqui tentando fazer a coisa bem feita. Eu sempre soube que quando o fizesse eu o faria bem feito.

Eu tentei, tenho mais de trinta anos, não caibo em lugar nenhum, juro que tentei. Quem sabe se fosse outro século, um século mais certinho, onde tudo estivesse definido, em que a gente não estivesse a par de todas essas facetas do ser humano, tudo está escancarado e não é bonito de ver, não, não aqui da minha perspectiva. Ou, quem sabe, um século clean como dos filmes de ficção científica….Tudo lenga-lenga, né? Deve ser mesmo. Eu desejo o silêncio mais profundo que há, o nada. Você já reparou que as pessoas têm medo de mim? E eu nem entendo o porquê. Sabe como me chamam lá na universidade? Lana Joplin. E eles pensam que eu não sei, tudo nas costas, riem os babacas. Que se riam! A caravana passa. Fico um pouco curiosa sobre o depois, o que vão pensar, se vão me detestar. Há muitos anos, um amigo que estudava medicina disse que com um tiro na boca, bem no céu da boca, não há jeito de errar Eu não vou errar, não desta vez. Já errei tanto.


Leila Silva
(28/09/2004)

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Elegia

Pessoal, o meu querido amigo Vivaldo teve um conto publicado na BESTIARIO - Revista de Contos - Brasil www.bestiario.com.br.
Confiram, vale a pena. Titulo do conto: Elegia.

Sobre o autor: VIVALDO LIMA TRINDADE é editor da Verbo21 www.verbo21.com.br
sítio literário, e contista. Tem dois livros inéditos, Todo Sol mais o Espírito Santo e O Supermercado da Solidão.

domingo, 21 de novembro de 2004

Cadernos do Oriente

[Conto de Wu Jun (459-520), China. Traduzido a partir da Edição espanhola: Cuentos Fantásticos Chinos, Seix Barral.]

Na prefeitura de Yangxian, deu-se o caso de um homem chamado Xu que atravessava as montanhas levando nas costas uma gaiola de gansos quando encontrou um estudante no caminho. O rapaz estava caído e perguntou-lhe se podia ser carregado na gaiola porque tinha os pés machucados. Xu não o levou a sério e ainda ria quando o rapaz entrou na jaula sem diminuir de tamanho e sem que a jaula aumentasse de volume, ajeitou-se entre dois gansos sem causar-lhes nenhum incômodo ou medo.Xu voltou a carregar a gaiola pois, apesar da sobrecarga, não sentiu que ela pesava mais. Percorreram um trecho até chegarem a uma árvore baixa e ali Xu decidiu parar para descansar.
O estudante saiu da jaula e disse:
- Se não houver nenhum inconveniente, gostaria de preparar para nós uma comida simples.
- Claro! Respondeu, encantado, o viajante.
O estudante sacou, então, da sua boca uma grande caixa de cobre e de dentro da caixa foi tirando um prato depois do outro, já preparados. Um infindável e delicioso banquete.
- Queria dizer-lhe – disse o estudante depois de uns tantos copos de licor de arroz – que a verdade é que não viajo só, trago comigo uma mulher escondida e gostaria de convidá-la a sentar-se conosco, se isto lhe convier.
- Claro! Disse, mais uma vez, Xu.
O rapaz tirou da boca uma moça, vestida com uma elegância extraordinária e mais bela que todas as mulheres. Continuaram a comer e a beber até que o estudante, sentindo-se cansado e embriagado, deitou-se num canto e dormiu. A mulher aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que eu seja sua mulher, detesto este homem. Por isso, não vou só, trago comigo um homem escondido. Agora que meu marido está dormindo pesado, gostaria de vê-lo. Não dirá nada a meu esposo, não é mesmo?
- Claro que não. Respondeu Xu.
Ela tirou, então, da sua boca, um homem de uns vinte e três ou vinte e quatro anos, inteligente e amável, que esteve conversando animadamente com Xu, até que o estudante pareceu despertar. A moça tirou rapidamente um biombo da sua boca e atrás dele escondeu o amante. Ao mesmo tempo foi chamada pelo marido que, langoroso, puxou-a para deitar-se ao seu lado. O amante aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que seja uma mulher de bom coração, o meu amor não é só para ela, por isso não vou só, mas trago comigo uma mulher escondida. Agora que a outra está dormindo, gostaria de vê-la, você guardará segredo?
- Claro! Respondeu Xu.
Tirou da boca uma mulher de uns vinte anos de idade e continuaram bebendo, comendo e conversando os três até que ouviram ruídos vindo do lado onde estava o outro casal. Rapidamente o rapaz engoliu a mulher. No mesmo instante, a esposa do estudante saiu de detrás do biombo e disse:
- Meu marido está a ponto de acordar. Engoliu rapidamente o amante e ficou a conversar com Xu.
O marido acordou, finalmente, e disse:
- Acabei por dormir muitas horas. Desculpe tê-lo deixado só, você deve ter se aborrecido bastante. Bom, já está quase noite, teremos que nos despedir.
Colocou na boca a mulher e também todos os pratos, talheres, vasilhas. Só não engoliu uma grande bandeja de cobre:
- Como não tenho nada de valor a oferecer-lhe, deixo-lhe isto como lembrança do nosso encontro. Disse o estudante a Xu.

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Muito mais tarde, exatamente no ano 376, Xu foi elevado ao posto de bibliotecário imperial e teve ocasião de mostrar a bandeja ao vice-ministro Zhang. Este, examinando o objeto, descobriu uma inscrição que indicava ter sido ele fundido em 58, durante a dinastia Han.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

Elizabeth Bishop

Ontem à noite peguei, no meio da minha bagunça atual, um livro que comprei no sebo por uns dolarzinhos de nada, em Atlanta. O título é The Collected Prose, Elizabeth Bishop. Comprei o livro mais por curiosidade, sempre ouvi falar da Bishop poeta (ou poetisa, como queiram), os contos eram novos para mim. Além disso, essa autora Americana chama a minha atenção por ter vivido no Brasil por quinze anos ou mais. O conto que li ontem fala, justamente, de uma época em que ela viveu em Ouro Preto, o título do conto é, To the botequim and back.
Ela vai descrevendo tudo o que encontra pelo caminho na sua ida ao botequim para comprar leite. É muito interessante e é sempre bom – eu acho – observar o olhar do ‘outro’ sobre o Brasil.
Um exemplo desse olhar atento de Bishop:
“Aqui há um excesso de cascatas; os rios amontoados/ correm depressa demais em direção ao mar,/ e são tantas nuvens a pressionar os cumes das montanhas/ que elas trasbordam encosta abaixo, em câmara lenta,/ virando cachoeiras.”

Mas qual foi a origem dessa relação tão duradoura com o Brasil?
Bishop estava de passagem pelo Rio onde conheceu Lota de Macedo Soares a arquiteta idealizadora do aterro do flamengo, por quem se apaixonou e foi correspondida. Isso a introdução deste livro não explica claramente, nao sei porquê. Há, entretanto, um livro sobre as duas escrito por Carmen L. Oliveira, Flores raras e banalíssimas, da editora Rocco e que já foi traduzido para o inglês. Acho até – já li sobre isso em algum lugar – que pretendem fazer um filme baseado nessa biografia com Emma Thompson no papel de Bishop. Só espero que seja melhor que o filme baseado na vida de Sylvia Plath…

domingo, 14 de novembro de 2004

Londres 95

Da minha janela transparente
a todo instante
vejo um aviao no céu de Londres
A nuvem do verão de Londres é igual à do Brasil
Os velhos de Londres, são mal humorados
Os velhos indianos de Londres, não são não
Os jovens fazem seus beds nas streets de Londres
_Cigarette, please!
Os italianos de Londres, são como os italianos da Itália.
São?
Não sei não.

Leila Silva
Londres, agosto 1995

[Para my dear dear Dani]

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Haicai


A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra


Matsuo Bashô

quinta-feira, 4 de novembro de 2004

Era uma vez um letrado chinês: Pu Songling

[Essa resenha e tradução do conto de Pu Songling foram publicados na Verbo21 há algum tempo atrás. Espero que gostem. Alguns de vocês, eu sei, já o leram quando foi publicado.].


Era uma vez um letrado chinês: Pu Songling


Um dia estava eu revirando uma livraria em Bruxelas à caça de alguma coisa da literatura asiática, qualquer que fosse, mas de preferência, chinesa - estava me preparando para viver na Ásia e não queria chegar no continente completamente ignorante da sua literatura. Assim, deixei que o acaso me guiasse pois não contava com muitos outros meios e o acaso levou-me ao livro “Chroniques de l’étrange” de Pu Songling(1640-1715), contos traduzidos do chinês e apresentados pelo sinólogo André Levy.

Certamente que li a contracapa antes de passar no caixa e empenhar os meus francos (o euro ainda nao existia). Ali o tradutor explicava que esta era uma das obras maiores da literatura chinesa e que a literatura mundial não oferecia nenhum equivalente. Trata-se de uma obra do século XVII mas que só foi largamente difundida na segunda metade do século XVIII e apareceu bem mais tarde no Ocidente, no final do século XIX através de traduções de traduções, evidentemente aproximativas, fragmentárias ou redundantes, como coloca o autor do prefácio e tradutor. Pronto, decidi que os meus francos estariam bem empregados.

Hoje há muitas traduções desse livro de estórias de raposas (seres sobrenaturais), demônios, reencarnação, críticas aos abusos sociais, costumes, etc… Infelizmente não há ainda uma tradução para o português.

No conto O Cão adúltero, Pu Songling narra a estória de uma mulher cujo marido, por conta de suas atividades comerciais, viajava por longo período, chegava a ficar ausente por um ano. Então, para satisfazer as necessidades da carne a mulher ensina alguns truques ao cachorro. Um belo dia o marido chega em casa e o cachorro não gosta daquilo. Quando o marido vai para a cama com a mulher, ele irrompe no quarto, avança no homem, mata-o e toma o lugar que já considerava seu. No vilarejo, todos ficam indignados com a estranha morte e denunciam o caso às autoridades. A mulher vai presa como suspeita, é convenientemente torturada mas nada confessa. Embora o juiz ainda não tenha entendido o X da questão, pensa que ali tem adultério. As penas para adultério eram extremamente severas nessa época (sobretudo para as mulheres), morte lenta e atroz.
O juiz tem a idéia de trazer o cachorro para perto da mulher (baseado lá em algum instinto de juiz). Quando o cachorro a vê, saudoso como estava, já corre pra cima dela. Assim o delito é descoberto. As leis sobre adultério não incluíam nada sobre cachorro, evidentemente. Não sabendo bem o que fazer, deixam o cachorro na prisão junto com a mulher enquanto aguardam decisão dos superiores. Centenas de pessoas subornavam os guardas para que colocassem mulher e animal na mesma cela e oferecessem o espetáculo carnal.
Finalmente o tribunal apresenta a decisão: a mulher e o cachorro são condenados à morte por decepagem.

Como já foi dito antes, a temática é muito variada e esse é apenas um exemplo do que pode ser encontrado no livro de Pu Songling. Alguns outros títulos de contos: O cadáver animado, Wang, o amigo de um humilde pescador, Pelo roubo de um pêssego, O encantador de serpents, o bibliômano, Yingning, a moça que ria …


Para ilustrar melhor o livro, deixo aqui a tradução de um conto, La fresque, feita a partir das traduções francesa e inglesa.

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O mural

Originário de Jiangxi, Meng Longtan se encontrava na capital em companhia do letrado Zhu. Um dia caminhavam os dois sem destino certo por ruas e pequenas travessas quando encontraram um mosteiro com quartos para meditação de dimensão modesta. O lugar estaria completamente deserto não fosse a presença de um velho monge que, mal os viu entrar, compôs respeitosamente as roupas e, cumprimentando os dois visitantes, ofereceu-se para lhes mostrar o seu pequeno refúgio.A sala principal do templo abrigava uma imagem do mestre zen Bhaozhi(1), as paredes laterais eram cobertas por pinturas de uma delicadeza tão fina que se podia tomar por verdadeiras as figuras humanas ali representadas. Na parede da direita, ao leste, estava representada a lenda budista “Ninfas celestes espalhando pétalas”; dentre as ninfas havia uma que especialmente comoveu o coração de Zhu, os cabelos soltos desciam-lhe até a linha fina da cintura (2), as mãos esguias e de dedos longos seguravam uma flor, mas o que mais impressionava o jovem letrado era o sorriso encantador dos seus lábios de cor de cereja e os olhos cintilantes que pareciam endereçar-lhe os mais amáveis e tentadores convites.Tão concentrado estava a contemplar o mural que Zhu não percebeu que perdia o controle de si mesmo; os seus pensamentos tornaram-se tão abstratos que entrou numa espécie de transe. Sentiu o corpo tomar uma nova consistência, como se flutuasse num estranho nevoeiro. Subitamente estava dentro do mural. A profusão das salas e pavilhões fez com que ele compreeendesse que não se encontrava mais no mundo dos mortais. Um velho monge, do alto de uma plataforma, pregava o Dharma a uma multidão de religiosos cujos trajes deixavam à mostra o ombro direito. Zhu misturou-se à multidão. Pouco depois, sentindo que o puxavam furtivamente pela manga, virou-se: Ali estava a jovem dos longos cabelos soltos a lhe sorrir. Ela afastou-se repentinamente e ele a seguiu de perto pelas galerias sinuosas até uma pequena casa, uma vez ali, Zhu hesitou, não ousava entrar. Ela, delicadamente, voltou-se, ergueu a flor e acenou de forma tão convidativa que Zhu não pode resistir. Como não havia ninguém no quarto ele tomou-a imediatamente nos braços sem que ela oferecesse muita resistência. Em seguida ela lhe concedeu os favores mais íntimos. Satisfeita, levantou-se, fechou as cortinas e, avisando-o que não deveria emitir sequer um som, saiu prometendo que voltaria quando a noite caísse. E assim foi, ela voltou nessa noite, na noite seguinte e na outra... até que as suas companheiras aperceberam-se e, combinadas, tanto procuraram que acabaram por descobrir Zhu."Cresce já um pequeno ser no teu ventre, mas tu ainda deixas o teu cabelo flutuar livremente como se fosses uma donzela", disseram elas entre risinhos de troça. Imediatamente lhe ofereceram alfinetes, brincos e fizeram-na arranjar o cabelo à maneira das mulheres casadas. Ela fez-lhes a vontade, envergonhada, sem dizer uma palavra. Depois, uma das jovens comentou com malícia: "Irmãs, vamo-nos porque, evidentemente, estamos aqui a mais". E, rindo, partiram.
Zhu contemplou a sua amada, experimentou a macieza daquela nuvem perfeita de cabelos e admirou a curvatura dos brincos de fénix que lhe pendiam das orelhas. Parecia-lhe ainda mais encantadora do que quando trazia os cabelos soltos. Ninguém no horizonte, entregaram-se ardentemente à intimidade embriagados pela fragância do almíscar e das orquídeas. De repente, antes mesmo que chegassem ao termo, ouviu-se lá fora, no meio de vozes exaltadas, os passos fortes de botas de couro juntamente com um tilintar de correntes. A jovem levantou-se apavorada e espreitou pela janela: era um oficial completamente equipado, a face negra como a laca, correntes numa mão e uma clava na outra. À sua volta estavam todas as donzelas. "Estão aqui todas presentes?", perguntou o oficial. "Sim, estamos aqui todas", responderam. "Se alguma de vós esconde um homem do mundo inferior será melhor que o denuncie. Não criem problemas dos quais ninguém vos poderá defender". "Não há ninguém", retorquiram elas em uníssono. O oficial olhou em volta e, com o seu olhar de águia parecia prestes a dar busca no esconderijo. Tão aterrorizada estava a jovem que a sua face tornou-se mais pálida que a cinza, só teve tempo de dizer: "Rápido, esconde-te debaixo da cama". Quanto a ela, abriu uma porta secreta na parede e desapareceu num ápice. O jovem letrado escondeu-se e ficou prostado, mal se atrevendo a respirar. Não tardou a ouvir o som pesado das botas do oficial a entrar e, pouco depois, a sair do pequeno quarto. Lentamente Zhu voltou a si, recuperando a compostura. Lá fora, o barulho das vozes ia esmorecendo pouco a pouco. Contudo, ele não tinha coragem para sair do seu esconderijo. Passado algum tempo, os ouvidos estremeciam com o som ininterrupto de campaínhas e os olhos ardiam-lhe como dois tições. Apesar do medo e do desconforto destas sensações, não tinha outro remédio senão esperar muito quieto pelo regresso da jovem pois, tão toldado se encontrava seu espírito, que já não sabia de onde tinha vindo...Ao aperceber-se do súbito desaparecimento de seu amigo, Meng Longtan, perplexo, perguntou ao velho monge o que se passara. "Foi ouvir os ensinamentos do Buda", respondeu o monge com um sorriso irônico nos lábios. "Onde?", perguntou Meng. "Não foi longe", atalhou o monge dirigindindo-se ao mural. Chegando-se à pintura o velho bateu na parede com um dedo e perguntou: "Porque te demoras tanto, meu bom patrono?" Imediatamente surgiu no mural a imagem de Zhu, a face descomposta pelas emoções, a cabeça ligeiramente inclinada como se estivesse a ouvir alguma coisa. "Há muito tempo teu companheiro te espera”, prosseguiu o monge. Nesse momento Zhu caíu do mural e ficou prostado no chão, os olhos esbugalhados e as pernas tremendo como bambús. Assustadíssimo, Meng perguntou-lhe o que sucedera. O amigo não sabia o que responder; na verdade, estava debaixo da cama quando ouvira um enorme fragor, como se mil homens tocassem a um só tempo um tambor gigantesco. Apavorado, saíra a correr da câmara para tentar descobrir o que se passava.Os dois amigos voltaram-se para o mural. A jovem continuava de flor na mão mas agora ao invés dos longos cabelos soltos ela trazia um elegante coque, elevado em espiral. Surpreso, Zhu voltou-se para o velho monge e perguntou-lhe a razão. "A ilusão nasce do espírito humano. Que outra explicação poderia lhe oferecer esse humilde servidor?"
Zhu sentiu-se extremamente abatido, Meng estava confuso e abalado. Ambos se levantaram e desceram as escadas que conduziam à saída.

(1) Eminente monge da meditação que viveu durante as dinastias nortistas e sulista (420-589)
(2) Os fato de não levar os cabelos atados significa que ela não era casada.

Leila Silva

Leila Silva

Bruxelas, 31 de Janeiro de 2004

Van Gogh

Em agosto deste ano visitei uma casinha perdida numa das regiões mais feias e mais pobres da Bélgica, Le Borinage. Nessa casinha viveu Vincent Van Gogh nos anos em que meteu na cabeça de ser pastor, como o pai. Lá tentou ajudar os pobres mineiros e desenhou. Não há pintura dessa época e a casinha fica realmente onde o Judas perdeu as botas(1), deve receber pouquíssimos visitantes, honestamente, não há muito que ver e este museu – por assim dizer – é completamente dependente do de Amsterdã, inclusive, as gravuras vendidas ali vêem com o carimbo do museu Van Gogh de Amsterdã com o detalhe de custarem muito menos, às vezes menos da metade do preço. Só me arrependi do que não comprei, aquela japonesa, que deixei para trás, por exemplo não me sai da cabeça. Não há muito que ver, é certo, mas ali viveu Vincent e vale a pena a parada.

A mulher que toma conta desse pequeno museu vive ali mesmo na casa, na parte de cima. Nessa ocasião ela nos mostrou uma foto com os familiares de Van Gogh, na foto havia um rapaz de cachos dourados chamado Théo Van Gogh, não o famoso irmão de Vincent mas um sobrinho-bisneto e ela nos informou que ele vivia em Amsterdã e trabalhava para a televisão holandesa.

Ontem ouvi no noticiário da TV5 que esse Théo Van Gogh foi assassinado, muito provavelmente por um marroquino extremista por causa de um documentário que ele fez mostrando os maltratos a que eram sujeitas muitas mulheres nos países muçulmanos.

(1)Uma amiga espanhola sempre entrava em conflito comigo por causa dessa expressão: Onde o Judas perdeu as botas, dizia que em espanhol é 'onde Jesus perdeu as sandalias' e que e' muito mais lógico assim, que Judas não usava botas naquela época.

Leila Silva

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Gringo again

[A Dani, da Duas Primaveras, muito gentilmente, enviou-me a seguinte explicação a respeito da palavra Gringo]


"Você com certeza já ouviu as palavras "oxente", "gringo" e "forró". Porém, você tem alguma idéia da origem dessas palavras?As palavras "Oxente", "Gringo" e "Forró", vem da mesma época e local. Do Nordeste, na época em que os americanos tinham bases no Brasil, epocas da Primeira e Segunda Guerra Mundial.A palavra "Oxente", era muito dita por americanos, que diziam "Oh Shit!" (Traduzindo - "Oh Merda!"). Porém, o nordestino ao ouvir aquelas expressões dos soldados norte-americanos, começou a usa-las e a adapta-las, até que hoje, se fala dessa maneira "Oxente", e muitas vezes de outra maneira também conhecida, "Ôôxxi!", sendo que o segundo exemplo é mais parecido.A palavra "Gringo" tem uma origem parecida. Os soldados americanos, quando estavam no nordeste naquela época, apesar de não terem trabalhado muito, tinham que fazer treinamentos, e nos treinamentos, quando queriam se comunicar uns com os outros a fim de se mover, diziam: "Green Go, Green Go". A tradução dessa expressão é "Verde vai, verde vai", quando na verdade queriam dizer, para que os verdes se mexessem. Os soldados que tinham uniformes verdes camuflados, eram conhecidos como "verdes".
Muita gente, ao ver alguns treinamentos, ouvia alguns soldados gritando "Green Go, Green Go", e via outros se movendo. Daí a expressão, quando queriam se referir aos soldados norte-americanos, diziam que eles eram os "Gringos"!"

"A palavra "gringo", para desigar cidadãos dos Estados Unidos, provavelmente se originou da cor verde dos uniformes americanos durante a guerra contra o México. Seria uma modificação uma dessas duas possibilidades: "Green, go" (Verdes, vão embora) ou "green coat" (os homens de) casaco verde. Segundo a Encyclopedia of Word and Phrase Origins, de Robert Hendrickson, a palavra pode ainda ter se originado de uma música cantada pelos americanos durante essa mesma guerra que começaria pelo verso "Green grow the rashes O". Finalmente, havia ainda um major americano de nome "Ringgold", que se parece com a pronúncia de gringo sem o "g". em algumas regiões do Brasil, "gringo" também se aplica a estrangeiros de outras nacionalidades além da americana, ou mesmo a pessoas de pele muito clara"


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E só para complicar, achei mais essa no Houaiss

Gringo

[Houaiss]. Etimologia: Segundo Corominas, deformação de griego ‘grego’ (>grigo>gringo), com o sentido de língua incompreensível em comparação ao latim.





terça-feira, 26 de outubro de 2004

Brasilia and green go.

Um dia um aluno francês me disse que uma vez foi obrigado a fazer escala em Brasíla, no aeroporto tomou um taxi e, durante a corrida, viu que nada na cidade podia interessá-lo, fechou-se no hotel e esperou o vôo, fumando, certamente, uns quinhentos cigarros. Lembro-me dele sempre envolvido pela fumaça. Ele já tinha estado duas vezes no Brasil, uma vez com os pais (que têm uma fábrica de perfumes na região parisiense) e outra por ele mesmo. Com os pais ficou no Club Med. Na minha modesta opinião, a coisa mais aborrecida do mundo deve ser vir para o Brasil e ficar enterrado no Club Med, mas tudo bem, cada um na sua e todo mundo com sukita. Quando veio só, não perguntei o que ele ficou fazendo, só sei isso: que odiou Brasília. Do português que tentei lhe ensinar ele não aprendeu quase nada. Era desses que queria aprender línguas num passe de mágica.

Outro dia li numa revista que a esposa do novo embaixador (americano?) todo dia sonha que está assassinando o Niemayer.
Eu fui conhecer Brasília já grandinha (eu e Brasília)….isso foi, vamos ver, há uns três anos atrás. Quer dizer, eu já conhecia boa parte do mundo quando fui conhecer a capital do meu país. Shame on me! Eu tinha um amigo brasileiro que, viajando pela Europa, mentia que conhecia Brasília. Não só mentia como descrevia a cidade, os monumentos, os bairros e tudo o mais que o ouvinte quisesse saber. Nunca tinha botado os pés lá mas que não queria confessar isso. Na verdade, os europeus querem saber muito mais sobre a Amazônia do que sobre Brasíla. E lá também nunca estive. Hei de ir!

Dia desses passei pelo Planalto Central com amigo euro-americano. Discordo do meu aluno francês e da senhôra embaixatriz…Não me pareceu mal. Não sei se ia querer viver lá a vida inteira mas não saberia dizer onde quero viver a vida inteira. Há tantos lugares para se viver. Agora, por exemplo, eu queria passar um ano em Buenos Aires.

Antes de entrar em Brasília vi um letreiro que indicava o ‘Hotel Hótymo’….Hótymo? Pelamordezeus! Tem gente criativa neste mundo, não? Depois passamos por um viaduto que se chama Ayrton Senna. Again? Nem estamos em São Paulo. Esclareço que não tenho nada contra o Senna e sei que é proibido falar mal dele, não vou arriscar. Eu só acho que podiam variar um pouco, cansa a vista esses nomes repetidos. Bom, deixemos o Senna de lado, ou melhor, debaixo.
Na estrada, em meio aos berros de Janis Joplin, o meu amigo quis saber se no Brasil também se usava o termo gringo, como no México. Claro, eu disse, só não sei se se usa ‘como no México’. Ele disse que no México o termo é carregado de negatividade e só se usa para os americanos….Well, acho que aqui é um poquito diferente. Depois discutimos a origem da palavra e eu expliquei que, vejam bem, uma vez li que o termo nasceu em certo país da América Central (?). Os nativos, quando viam os soldados americanos, nos seus uniformes esverdeados, gritavam: Green go! O meu amigo quase morreu de rir da explicação que, eu juro, não foi inventada por mim.
Algum de vocês já ouviu algo a respeito da origem dessa palavra? Tenho que arrumar outra explicação para esse gringo, embora eu tenha achado esta bastante plausível.

Leila

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Zhang Hua

[Ando, desde que vivi na Ásia, envolvida com os fabulosos e fantásticos contos orientais, principalmente chineses. Infelizmente, para ler ou escrever em chinês eu vou ter que nascer mais duas vezes e, numa dessas vezes, se possível, na China. Aí sim. Então, como não posso ler esses contos diretamente em chinês, estou lendo versões francesas, inglesas e espanholas que encontro. Estou traduzindo contos de um autor chamado Pu Songling….traduzindo ou, mais provavelmente, traindo, como se diz, não? Tradutore traditore! Garanto a veracidade do adágio (se isso for um adágio). Mas, se temos que trair, que o façamos com alguma beleza, como disse um tradutor cujo nome não me lembro mas hei de achar e voltar aqui para acrescentar. O Conto de Pu Songling que traduzi foi publicado na excelente revista virtual http://www.verbo21.com.br/. Um dia desses o publico aqui. Hoje deixo um conto de Zhang Hua, que traduzi a partir de uma versão francesa e espanhola.]


Zhang Hua (232-300)

Criança prodígio, Zhang Hua foi, muito cedo, recomendado ao imperador Cao Pi como conselheiro. Era dotado de rara e vasta erudição, meio mago, meio intelectual, cortesão, adivinho, possuidor de estranhos poderes, um pouco como Paracelso . Foi, provavelmente, assassinado por razões políticas.

Conto:

Existe um país chamado Daren ou “O país dos homens grandes”, cujos habitantes ficam trinta e oito anos nos ventres de suas mães e então, nascem. E já nascem com os cabelos compridos e os corpos crescidos. Não sabem andar, mas sim subir em nuvens e ir assim de um lugar para o outro. Talvez seja uma variedade de dragão.
O dito país fica a exatamente quatorze mil lis do conhecido monte Guiqui.

Li – medida intinerária chinesa, equivalente a cerca de 576 metros.

domingo, 24 de outubro de 2004

Emily Dickinson

Um poema de Emily Dickinson, aquela que raramente saia do quarto da casa do pai e que morreu tendo publicado, anonimamente, apenas sete dos seus mais de dois mil poemas. Escreveu ela: "To live is so startling, it leaves little room for other occupations."

O poema:




Faith is a fine invention
For gentlemen who see;
But microscopes are prudent
In an emergency!
Emily Dickinson (1830-1886)

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Os trilhos [publicado em Anjos de Prata]

Os trilhos.

Quando cheguei à rodoviária de B.H. lá estava ele me esperando e fumando um cigarro. Ansioso, talvez. Aplicou-me um beijo na boca, pegou a minha mala e conduziu-me até o fusca emprestado. Esperava que eu não estivesse cansada, disse, pois os amigos - que eu ainda não conhecia - estavam esperando no bar. Eu tinha viajado por mais de sete horas, mas, de fato, não estava cansada. Não se cansa fácil aos dezenove anos.

Sempre detestei o gosto da cerveja, mas, na época, gostava das conversas de bar e tolerava as chacotas dirigidas aos meus sucos de fruta. Lá estava um tipo meio hippie que estudava e tentava propagar as belezas do Esperanto. Escutava interessada, me interessava por tudo e por todos.

Tarde da noite fomos para casa, ou melhor, para o apartamento da mãe dele. Era lá que ele estava morando. Ao chegarmos ele colocou a mala sobre o tapete limpinho da sala e beijou-me com muito entusiasmo e em muitos lugares. Depois mostrou-me o quarto que sua mãe arranjara para mim e foi dormir no seu, não sem antes beijar-me mais uma vez e dizer-me que era importante que eu colocasse ordem na minha vida, sexual inclusive, que um dia ele seria um advogado bem sucedido e poderíamos ir juntos recomeçar a vida em algum lugar pouco provável, Tocantins, por exemplo. Para isso eu deveria resolver, eu deveria vir vê-lo com mais frequência, eu deveria evitar certas companhias, eu deveria……Boa noite!

No dia seguinte visitamos livrarias, bares, restaurantes, andamos por vielas e Belo Horizonte era fresca nesses dias sem congresso, sem horas, sem professores, sem palestras chatas…..Pela primeira vez eu estava livre em B.H e nem ele ia acabar com isso me atazanando com essa novela de advogado bem sucedido, Tocantins e outras barbaridades. Bebi cappuccinos, sorri para os bêbados, fui a feiras e fugi das conversas sérias.

No Domingo à noite, intacta, entrei no ônibus e ele ainda me preveniu mais uma vez, eu deveria pensar bem e achar os trilhos, lindas crianças enfeitariam a nossa vida, ele advogado e eu, professora, por que não? Que eu pensasse bem…..Da janela o vi abanando a mão num gesto esperançoso. Algum tempo depois ele telefonou e disse que assim não dava pé, não íamos chegar a lugar nenhum. Eu era uma sem-rumo, não sabia o que queria. Argumentei, por orgulho e porque não estava acostumada a levar pés na bunda. Não, ele não queria tentar mais por que eu não sabia o que estava tentando. Pronto, era assim, que eu não me perdesse definitivamente na minha confusão. Passar bem.

Passei.

Leila Silva

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Bons Ares

[Pessoal, estou visitando, pela primeiríssima vez, Buenos Aires, e estou adorando. Dizem (as más línguas?)que só em Buenos Aires há mais livrarias do que no Brasil inteiro. Eu nao saí contando as livrarias daqui, pero que las hay las hay. Algumas ficam abertas vinte e quatro horas por dia. Enfim, eu estou indo para uma delas agora, El Ateneo, se nao me engano. Logo estarei de volta, agradeco muito os recados que deixaram e as mensagens que enviaram. Beijao a todos.]

Leila

sábado, 16 de outubro de 2004

Conto [Damas]

[Este eu ofereço para o Manoel do Agreste - http://www.agrestino.blogger.com.br/-. Foi o início de nossa amizade.]
Damas

_ A coisa mais engraçada que eu acho, sabe o que é ?
_ Não, o quê?
_ E que todo dia, quando dá uma certa hora a gente muda de posição…
_ Quê? Que conversa de doido é essa?
_ De doido não, tu não me espera terminar…é que quando dá uma certa hora a gente passa da posição vertical para a horizontal, entende?
_ Não, não entendo, mas eu entendo que é a sua vez de jogar.
_ Aí vai…como não entende? Todo dia é assim, para uns é às nove horas, para outros é meia noite, mas todo dia, todo mundo se coloca na posição horizontal, fecha os olhos e se entrega, quer dizer, não sei se é se entregar, mas o sono é um estado estranho…e é esquisito estar na vertical e depois passar para a horizontal…estranho, eu estive pensando.
_ Escuta, pra você estar pensando tanta besteira, eu estou achando que você se coloca na posição horizontal, mas não fecha os olhos…
_ Fecho sim…
_ Pode ser que feche, mas não deve realmente passar para esse outro estado, esse que você chamou de ‘entrega’….Será que você anda com medo?
_ Ih, cara, tu tá entendo tudo errado…Eu tô falando que isso é uma coisa esquisita, que quando chega um período do dia todo mundo muda de posição…Não vai querer bancar o psicólogo agora, vai?
_ Todo mundo não, tem gente que tem insônia.
_ Mas até esses ficam lá na posição horizontal, pegam um livro….
_ Quem te falou isso? Você andou fazendo pesquisa?
_ E, de qualquer modo, eu tô falando no geral, insônia é doença, então não conta.
_ Insônia é doença? Joga cara, presta atenção.
_ Ué, deve ser….Pois então…Ah, aqui, comi a tua dama…eu falo mas presto mais atenção que tu. Então, quando dá lá umas tantas horas, todo mundo muda de posição…
_ Pô cara, vai direto ao assunto, você já repetiu umas dez vezes essa coisa de mudar de posição…
_ Ih, tu tá nervoso porque tá perdendo? Então, seja no Japão, nas Filipinas, nos Estados Unidos…..
_ Ok….ok..
_ Em qualquer lugar do planeta, todo mundo muda…digo, vai dormir..vai pra cama, pra rede, pra esteira…
_ Será que em todo lugar do mundo as pessoas dormem mesmo na horizontal? Ah, você esqueceu de comer aqui, fuuuu, soprei…
_ Bosta! Tu me distraíste de propósito…Eu não vejo melhor posição pra dormir do que na horizontal….que povo seria besta o bastante para pensar em dormir em pé?
_ Ah, sei lá, na Africa, talvez?
_ O que é que tu quer dizer com isso? Isso é racismo.
_ Racismo por que? É que na Africa eles têm uns costumes diferentes…
_ Em todo lugar tem gente que tem costume diferente..
_ Não fui eu que falei que quem dorme em pé é besta, foi você…e agora ainda me acusa de racismo?
_ E seria inteligente dormir em pé?
_ Cavalo dorme em pé.
_ E cavalo é inteligente?
_ ……..
_ Pronto…ganhei.
_Oh, merda.


Leila Silva
Bruxelas, 10 de dezembro de 2003.

sexta-feira, 15 de outubro de 2004

O Caixote

Pessoal,
O Caixote é uma revista eletrônica super bonita e bem cuidada. Estou neste número com um conto que vocês que me acompanham já leram aqui no Blog, Airama. Muitos de vocês já devem conhecer a revista, para os que não conhecem, deixo a dica.
Abraços.

Leila

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Andanças


Andanças

Um dia vi Veneza,
Vi Paris e Istambul.
Em Istambul queriam me vender tapetes mas disse ´No, thank you´ e fui ver a mesquita Azul. Depois tomei uns porres e fui ao Hamam, onde mulheres com os peitos grandes à mostra me banharam, me massagearam enquanto narravam umas às outras as peripécias do dia. Isso é o que eu supunha, visto que de turco, nada entendia.

Em Veneza comprei um chapéu barato que levei para Cingapura.
Cingapura eu vi, revi e vivi e lá deixei o meu chapéu veneziano.
Em Cingapura chovia.
Todo dia.
Minha amiga japonesa nunca se esquecia da sombrinha.
Tão precavida, essa Misako.
E eu, tão descuidada, tomava muitos pingos e sofria de sinusite. Uma chinesa quis me tratar com acunpuntura dizendo, com muita honestidade : ‘Vai doer !`. Covarde, fui embora. Já me bastava a dor da sinusite.

Fui a Roma e não vi o Papa, fui ao México e não vi Cancun.
Na cidade do México, o motorista de táxi me fez escutar Nélson Ned, ´um grande brasileiro.` Explicou-me e levou-nos à casa de Dolores Del Rio. Frida também estava lá.

Nunca vi Cusco, nem Bagdá
Nem Jerusalém, nem Calcutá.

Mas tempo haverá.

Bruxelas, 24 de setembro de 2003
Leila Silva

sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Cadernos da América do Norte [Parte V]

[Mais um pouco de passado....]

Março 2001

Terminei a audição (audição?)do diário de Anne Frank em inglês. Tudo pelo meu inglês. Fui à bibioteca devolver tudo. Encontrei lá um senhor já velhinho e muito muito gentil que……fala português. Oh…..my……god! Eu estava gastando o meu inglês quando chegou o José Renato (meu sobrinho) e me disse não sei o quê, daí, percebendo qual era a nossa língua materna, esse senhor respondeu em português para o meu grande espanto. Contou-nos que morou numa pequena cidade do Pernambuco (forgot the name) quando era criança e que o Brasil ‘nunca saiu do seu coração’. Acho que os pais eram missionários….(I am not so sure). Ele me sugeriu uma montanha de Steinbecks e estranhou o meu Mark Twain “No 44, The Mysterious stranger”. “Mas porque, minha filha, atacar um livro tão dificil e desconhecido, toma aqui, vai ler Tom Sawer!”. Como disse, esse senhor é pura simpatia e pagou até mesmo as minhas fotocópias (“Para os novos amigos brasileiros!”), mas não gosto de muita itromissão nas minhas leituras. Terminarei o meu estranho Twain e depois veremos.

Março sobrevive. Uns dias bate chuva, outros bate sol, um dia venta mais que o outro, o trânsito continua pesado, os americanos continuam orgulhosos, Bush continua caçando terroristas e eu, e eu, e eu………..
Estou seguindo os cursos de inglês das escolas das igrejas. Muito bons. Alguns. E de graça….Mais ou menos de graça. Na aula de segunda, na hora do intervalo tenho que virar uma curuminha e cantar para o Senhor (Lord, I lift my voice to worship you!). Never mind. Nas sextas tenho a possibilidade de chegar atrasada e escapar ao cantochão.

Março se arrasta….Nos mudamos outra vez. Tudo (o tudo é muito pouco) está nas caixas – livros, discos. Vou transportando aos poucos, tenho uma semana para isso.

Leila Silva

terça-feira, 5 de outubro de 2004

Cadernos da América do Norte -Diário USA 2001[parte IV]

[O Allan me escreveu que é engraçado ler essas impressões retiradas de um diário de 2001, e é mesmo. A guerra no Iraque ainda não tinha começado, Bush ainda estava eufórico pensando (ou estavam pensando por ele) como poderia tirar o melhor proveito do ataque....e tirou. Enfim, vamos ver o que vem pela frente. Abraços a todos e obrigada pela paciência.]

Natal no ar. Hello, Papai Noel! Vejo o velhinho de barbas brancas pertinho da minha janela com as suas renas e as bochechas rosadas ah ah ah ah todo feliz indo distribuir presentes às criancinhas americanas. Nao é verdade, eu nem estou perto da janela e nem me lembro que é natal até que a minha companheira de viagem diz “Feliz Natal” retribuindo a cara feia que eu fiz quando ela pediu passagem. Que ódio! Na hora do registro me disseram que o avião não estava muito cheio e que iam me deixar dois bancos. Quantos panacas pensariam em viajar no dia de natal? Enfim, tive sorte, a companheira fala muito mas é simpatica e interessante.
Alguns evangélicos que devem ter vindo estudar ‘pastorlogia’ com os americanos tomaram o mesmo vôo. Como podem ‘eles’ viajar no dia do natal?

Adeus 2001. Bom dia 2002 Brazil….meu Brazil brazileiro.

Família familia papai mamãe, gato, cachorro, irmã….Cássia Eller se foi. O Sobrinho veio comigo.

Turistando todo dia que não chove, chove, chove, zoo, jardim botânico, the wonderful world of coca-cola….Hello! Oh, brasileiros também? Pode fazer aqui uma foto de nós dois? Obrigada.

Stone Mountain, CNN, cinema e pop corn e……….. janeiro se foi e não volta mais.

Depois de janeiro vem o fevereiro, todo ano é assim, mesmo nos Estados Unidos mas aqui ‘Fevereiro não tem carnaval nem tem uma nega (nem afro-americana) chamada Tereza’. E fevereiro termina no dia 28, ou seja, amanhã. Em fevereiro fui parada pela polícia por causa do meu farol alto demais. Ou baixo demais? Ou ....? (Ainda não entendi, seu policial). Não vi o primeiro sinal do senhor policial e só percebi que a coisa era comigo quando ele acionou a sirene e ordenou que eu encostasse o carro. Como nos filmes. Que emoção! Que restará para o mês de março?

Março
Lixei as unhas. Beautiful nails!

Leila Silva

[Gostaria de pedir a vocês que deixam os comentários que acrescentassem alguma informação como e-mail, endereço do blog, se tiverem....Obrigada!]

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

Cadernos da America do Norte-Diário USA[parte III]

Novembro 2001

Carteira de motorista. Aulas de informática. I’m very busy now. “Disseram que eu voltei americaniZada”….
ainda não voltei. Voltar pra onde?

10/11
Concerto de Taj-mahal. Blues, brother! O cantor ousou oferecer uma música para Bin Laden….Mama mia! É bem verdade que ele é um negro ops! Afro-americano muçulmano, como muitos por aqui. O público também era um espetáculo, nada do que eu esperava encontrar nos USA.

Lixo!
Perguntaram a um ministro chinês em visita aos Estados Unidos o que mais o impressionara por aqui e ele respondeu: O LIXO.
Deveras impressionante, senhor ministro.

11/11
Money! Money! Money! Money! Money! Money! Money!

Hoje encontramos um casal brasileiro. Ele engenheiro, ela, arquiteta. Classe média alta. Ele chamou Lula de “O Barbudo”, falou dos filhos, das casas que possui e da casa que pretende comprar aqui. Já viveram também na Europa e Canadá. A arquiteta preparou uma deliciosa sopa de cebolas. Talvez seja o nosso último encontro.

12/11
Mais um avião cai do ar em Nova York. Pânico! Ninguém entende nada.

13/11
Maldito seja quem inventou a necessidade do carro! Maldito seja este país onde não se pode andar, onde as pernas são as rodas. Maldita seja a dor de cabeça.

Americano é tão bonzinho!

Depois de amanhã is Thanksgiving. Feriadão nacional. Ninguém sabe ao certo a razão mas é um dia de tradição. Mas que bobagem estou dizendo, desde quando uma tradição precisa ser explicada?

A minha professora do curso de computação fez algumas perguntas sobre Singapura (com S, decidi que é melhor) e lembrou-se do garoto americano que recebeu uma surra por lá por causa dos ‘atos de vandalismo’.. Lembrou-se também de que a venda de chiclete é proibida em Singapura e concluiu que ‘esse é um povo muito louco’. Então falamos também da pena de morte…..em Singapura e a professora se perguntou triste e desanimada “Eu me pergunto como é que a pessoa que aplica essas penas, o que aplica a surra e o que mata, pode dormir em paz? Que povo louco.” I’ll say! Que povo louco. Será que os americanos aprendem essas táticas na escola?

Thanksgiving “Happy Turkey’s day”! Alguém me disse. E eu nem comi peru no dia. Em contrapartida fui a New Orleans. Festa, festa, barulho, cheiro de cerveja, de cigarro, prostitutas, música. Alguns pastores chamam New Orleans de ‘Sodoma e Gomorra’, as duas ao mesmo tempo. Além de muita festa, há também muita pobreza na Louisiana, muita corrupção, muitos analfabetos, muitos negros (ops..afro-americanos) nas prisões, muita violência. Nem tudo é perfeito nos Isteitis.
Na volta para Atlanta, engarrafamento infernal e a rodovia não era pavimentada com queijos.

Henry Miller
Quando estava em Paris, Henry Miller escreveu, em carta a seu amigo americano, que a única coisa que ele lamentava era não ter ido para a Europa mais cedo. Ele sabia que “nunca seria um europeu, mas pelo menos ele não era mais um americano, thanks god!”
Hoje toda a nação parece “Proud to be an American”.

27/11
Jantar com um galego e um ítalo-belga. Nada melhor do que encontrar europeus para (por assim dizer) desabafarmos sobre a vida nos Estados Unidos.

Amanhã já é dezembro. Feliz navidad! Feliz navidad! Ouço todos os dias no rádio, mas não estou no México, ainda estou nos Estados Unidos. No supermercado (ou venda?) mais próximo de casa nem se pode pensar em inglês, é sempre ‘buenos dias!’ ‘Son quatro dólares.’ ‘Muchas gracias’.
E porque não? O único problema é que lá não encontro quase nada de que preciso, não há frustas frescas, não há leite desnatado….em contrapartida há muitas bijuterias, doces e muitas velas com a cara do cristo e da virgem de Guadalupe. La navidad la pasaré en el avião a caminho do Brasil. Que me importa la navidad, contanto que eu chegue, que a virgem de Guadalupe nos proteja e ajude o piloto a desviar das torres que por ventura apareçam pela frente.

Já é tarde, P. está na Europa e Günter Grass me espera ansioso com o seu Tambor.

Dezembro
Sábado americano: compras, tv, carro, ginástica, lavanderia. Encontrei Fred, da Indonésia, na lavanderia e combinamos um jantar para sexta.


Mais uma semana já se foi entre computadores, trânsito, sanduiches, correção de pronúncia, biblioteca, um filme - Paris Texas - alguma leitura (O Tambor que vai lento, lento pois preciso dedicar meu tempo livre às leituras em inglês).
Encontrei na biblioteca pública uma antiga edição de Tropic of Cancer com prefácio de Anaïs Nin. Até agora Henry só falou de ‘cunt’. Se continuar assim, não terei que recorrer muitas vezes ao dicionário.

Encontrei outra vez Christine, outra estudante da Indonésia, e desta vez pude apresentá-la ao P. Conversamos por muito tempo no business Center do condomínio. Quando saímos P. me mostrou dois cockers e Christine nos disse “Na Indonésia, os cachorros nós os comemos”. Perguntei se ela já tinha experimentado e ela respondeu “Sometimes” e riu. Perguntei ainda se ela sabia preparar e ela disse que sim. Não pedi a receita.

Leila Silva
leilaterlinc@yahoo.com.br


sábado, 2 de outubro de 2004

Cadernos da América do Norte - Diário USA [parte II]

Outubro 2001

Anthrax. Medo. Pânico. Pó branco. Egoísmo. Odio. Ignorância. God bless America!

Na tv propaganda do Prozac. Ações em câmera lenta. Todo mundo feliz, correndo, regando o jardim, sorrindo, rindo. Experimente! Experimente! Admirável mundo novo.

Temos um apartamento. Home sweet home. Alugamos tudo: as colheres, as facas, o pano de prato, o escorredor, a cama, a mesa, everything.

Final de outubro
Nas segundas, participo de um grupo de conversacão na biblioteca local. Russos, venezuelanos, um chinês, um yuguslavo (segundo ele), um mexicano e uma brasileira, eu. No final o mexicano vem falar comigo. Em espanhol, é claro. Digo-lhe que adoro o espanhol mas neste momento preciso falar inglês. Ok, no problem! Ele me propõe carona e de vez em quando volta a falar espanhol. Tento responder em inglês. ‘Pero tu no pareces brasilera, estoy muy surpreso’. Ele arrisca um portunhol pois teve uma namorada brasileira.
E com o que deve parecer uma brasileira? Never mind.

No segundo encontro eu e o mexicano damos um fora. O professor nos entrega um folheto onde há uma foto da bandeira americana, faz um comentário sobre os últimos eventos ‘catastróficos’ e sobre o aumento do número de bandeiras expostas. Ele quer saber que tipo de sentimento o povo americano está demonstrando. Digo (e sem querer provocar, juro): Nationalism. Big mistake. Deveria ter dito PATRIOTISM. Uma russa puxa-saco encontra a palavra certa para a felicidade do professor. Já o mexicano não achou melhor exemplo para o verbo ‘destroy’ que “The USA are destroying Afganisthan”. Contrariado, o professor disse que a frase estava gramaticalmente correta, mas ele poderia também dizer que “The USA are trying to destroy Bin Laden, not the Afganistan”.

Ah! Aprendemos todos os dias.

Leila Silva

leilaterlinc@yahoo.com.br



terça-feira, 28 de setembro de 2004

Diário USA 2001 [parte 1]

Atlanta – Geórgia
Outubro – 2001

Primeira semana:

Corre, corre. Faz malas, desfaz malas, procura hotel, muda de hotel.

Perdida na cidade, no mundo.

Café da manha na livraria gay perto de Piedmont Park: bagle with cream cheese and café latte. Folheio os livros, olho a clientela. Um conversa no celular, outro trouxe o laptop, outros dois conversam animadamente.

Segundo e terceiro dias tomo café da manhã no mesmo lugar. O bagle é bom, o café é aceitável e não sei aonde ir. Estou cansada de museus. Nao posso ouvir a palavra museu. Não me proponha museu. Vou ao parque! P. trabalha.

Faz um friozinho e há sol. Caminho no parque. Delicioso sol. Quando faz frio, gosto de sentir o sol. Algumas pessoas passeiam com o cachorro, outras passeiam com as crianças. Quem passeia com o cachorro traz um saquinho para catar as bostas. Quem passeia com as crianças, dá muitos berros.

Sento-me num banco, pego o livro que trouxe mas continuo a olhar a paisagem, as crianças, os adultos, os cachorros dos adultos. Ninguém pensa em Bin Laden. Parece que não. Afinal, vou ler. ‘To kill a mockingbird’ foi a sugestão que recebi para conhecer melhor o sul. Leio em inglês para melhorar o vocabulário.

Ando, ando e sigo andando. Paro na frente de uma dessas lojas que vendem roupas de militar e muitas diferentes coisinhas do exército, Army supply. Fico olhando para uma camiseta com a cara do Bin Laden e um alvo. Um ‘afro-americano’ (agora é preciso ser politicamente correta) pára do meu lado, coloca os pacotes do FedEx no chão e fala e fala e fala e me aponta a cara do Bin Laden. Não entendo nada, absolutamente nada. Tento explicar que não estou entendo, ele finalmente percebe que venho de outro planeta. Aproveito para perguntar se há um cinema nos arredores. Ele pergunta ‘wanna go to the movie?’ Se eu quiser esperar, dentro de uma hora ele terá terminado o trabalho e poderá ir comigo. Thank you very much! Prossigo a caminhada. Não vou ao cinema.

Paro para um sanduíche feito por um grego e pago 5 dólares para o turco do caixa. Simpaticíssimos. O grego fala muito. Os dois vêm para a minha mesa e conversamos até o final da tarde pois não há muitos clientes e eu não tenho o que fazer.

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Leila Silva

leilaterlinc@yahoo.com.br

quarta-feira, 8 de setembro de 2004

BALAIO DE TEXTOS

Caros amigos,

Primeiro quero agradecer as mensagens que vocês me enviam, aos que não enviam também agradeço a leitura. Peço desculpas pelo meu relapso destas últimas semanas, não tenho tido tempo - nem máquina que preste - para responder....Sempre que posso visito os amigos, nem sempre tenho oportunidade de deixar os comentários.
Gostaria de dizer que estarei no balaio de textos do Trevisan (SESC) nessa quinta dia 09, às 20 horas. Para os que não conhecem vale a pena dar uma espiada. Cada semana um conto ou poema é escolhido para debate coordenado por João Silvério Trevisan. Eu gosto muito e participo sempre que posso. Por coincidência, o conto escolhido é esse que está no post anterior a ´Singapura´, o título é Xantipa.
Vc poderá entrar no site pelos endereços: http://www.sescsp.org.br/sesc/convivencia/oficina/frabalaio.htm ou
poderá entrar na sala do Balaio pela home page do UOL http://www.uol.com.br/ ou clicar aí no título.
Abraços a todos.

Leila Silva


sábado, 4 de setembro de 2004

Singapura

[Pois é, eu nunca deveria ter chamado isso de Cadernos da Bélgica.....Aí vai um texto de mais ou menos 2000, quando estava chegando em Singapura. Já sei, em português do Brasil é com C. Prefiro com S. Explicarei a questão da grafia em outro post.]


Chegando em Singapura.....


“Senhores passageiros, gostaríamos de lembrar-lhes que Singapura aplica a pena de morte aos traficantes de drogas e patati patata…patata”. Estico as pernas enquanto escuto algo desse gênero em inglês, depois em chinês e outras línguas mais. Por umas graminhas de nada de maconha o seu pescocinho pode sentir a aspereza da corda das autoridades de Singapura. Parece que ainda usam o enforcamento....Ai! Estico mais as pernas cansadas de tantas horas de vôo, loucas para sentir o ar e o solo da Ásia. Ásia, quase um sonho, a única porção de Ásia que eu conheço até aqui é a parte Oriental de Istambul. Já não posso mais esperar e agora essa fulana aí me falando em pena de morte. Quem seria louco o bastante para aterrissar nesse país com droga na mala? Há sempre uns desavisados e quem avisa amigo é.... Agora ninguém mais estava desavisado pois a mocinha explicou a coisa em pelo menos quatro línguas. Já não agüento mais de vontade de chegar. Nem sei onde estou chegando mas quero chegar, quero deixar essa nau, essa caravela, esse trem! E essa moça que só fala em droga e pena de morte. Já querem nos assustar antes da chegada. Dou mais umas esticadas e, tranqüila, penso que não tenho nada a temer. A única droga que carrego são as eternas e ternas aspirinas. Será que têm alguma coisa contra as aspirinas também? Ouço mais um pouco da ladainha para ver se ela vai chegar nas aspirinas. Não. Me estico mais, olho para baixo, água, água, água. Afinal Singapura é uma ilha. Faço umas ginasticazinhas com os pés e me vem à cabeça, sem mais nem porquê, uns filmes bestas de sessão coruja onde há uma mocinha americana viajando para algum lugar da Ásia, Tailândia, talvez.... Lá vai a mocinha toda inocente pensando na praia que vai pegar e de repente, não mais que de repente encontram uns quilos de pó na mala da coitada. E ela com cara de ‘como isso apareceu aí?’. Na verdade é inocente, mas não convence os malvados policiais que querem se aproveitar de uma pobre (pobre no sentido de coitada, afinal ela é Americana e turista) estrangeira. Resultado: Prisão e muito bafafá até que no final os pais ou a embaixada americana ou o amante conseguem resgatar a aventureira da sua miséria asiática. A lembrança desse ‘clássico’ do cinema é bastante para dar asas à minha imaginação de paranóica. Penso na minha mala que não foi fechada a chave. Imagino todos os caminhos que ela possa ter percorrido. E se alguém colocou umas muambas lá dentro. Ai Jesus! E eu nem sou americana. Quem vai se importar com a sorte de uma brasileira traficante? Ninguém. Isso não vai dar nenhuma bilheteria. Vai dar, no máximo, uma foto com a cara bem assustada no jornal da minha cidade. Espero que pelo menos a minha família entenda que eu sou INOCENTE, que eu só tinha as aspirinas.

Afinal pousamos e é com certo alívio que pego as minhas malas intactas, sem revistas, sem policiais. Aliás tudo é calmo e fácil demais para quem ouviu tantas estórias. O aeroporto é extremamente organizado, tão limpo quanto um hospital e não há esperas.

Assim começa a minha primeira incursão pela Asia.

Leila Silva

leilaterlinc@yahoo.com.br


terça-feira, 24 de agosto de 2004

[Cadernos da América do Norte]

Óleo sobre tela

....e como era aquele tempo em que as pessoas não tinham fotografias amareladas para ver ? aquela chinesa ali, tão grávida, que parou para descansar [o marido americano segura a bolsa enquanto isso. bolsa de mulher] tem em casa uma foto antiga da mãe na China.

da sua boca sairá uma filha que ela quererá perfeita e, quem sabe, cristã. mas aquele outro casal que passa, ele chinês, ela chinesa, observa sem pudor a que ali descansa o seu ventre já quase maduro e o marido que segura ternamente a bolsa feminina. A bolsa outra, dia desses, rebentará e uma menina muito linda e mista verá a luz. mas o olhar do outro casal lançou uma sombra na boca da grávida? a boca mensageira, corrosiva ou libertária, a boca que recriará uma avó chinesa, uma língua chinesa e os parques da China tão mais vastos e verdes que este americano e plástico. a graça imperfeita da China parecerá tão distante e a foto da avó desdentada e camponesa será uma irrealidade. a mãe entoará berceuses em chinês. deve existir berceuses em chinês. sim.

Leila Silva

leilaterlinc@yahoo.com.br


sexta-feira, 13 de agosto de 2004

A velhinha do quarto andar

[Série vizinhos]

A velhinha do quarto andar tem 80 e tantos anos, o marido, pouco mais velho que ela, foi-se embora com a mulher que arrumava a casa deles. A velhinha, desesperada, batia todos os dias na porta da Madame de Vish (no primeiro andar) pedindo ajuda, conselhos…Não sabe fazer nada sozinha. É triste vê-la arrastando os grandes sacos de lixo até o elevador. Madame de Vish, esta nobre e faladeira senhora – a ela devo pelo menos 80 por cento das estórias dos vizinhos – ajuda sempre.

Pois o velhinho, atentado pela faxineira(sempre segundo madame de Vish ou a Luxemburguesa que também é boa de estórias) estava assediando a esposa para que vendesse o apartamento deles aqui.

Outro dia P. encontrou-se com a velhinha tentando atravessar a rua para ir ao cabeleireiro. Ajudou-a na travessia, acompanhou-a até o cabeleireiro e ela comentou ‘Não sei porquê, os gays são sempre os mais gentis’. P. não é gay, mas não tem importância….

Agora soube que o velhinho morreu….passou muito pouco tempo com a amante e nem tiveram tempo de convencer a velhinha a vender o apartamento.

Leila Silva


quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Airama

[Não faz parte, necessariamente, dos cadernos da Bélgica. Por falta de tempo de contar os casos daqui, saio da minha proposta e deixo esse conto curto.]

Airama

“ A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra”
Matsuo Bashô


Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho…chaninho…chaninho…sem atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.

Maria não me quer mais. Diz coisas descabidas, cospe no passado, rasga as fotos.
Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.
Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta por cento daquilo.
Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez as malas e coloriu o meu armário.
Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´
Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.

O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.

Um dia Maria acordou e anunciou que o perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n. 5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas Maria não queria saber de nada.
Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali….`vai mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira carregada.

Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.

O cão ainda está aqui, lavei-o, alimentei-o, ele engordou…Olha para a televisão com a boca aberta e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação natural, dá conselhos de beleza….Quanto mais revela, mais esconde. Maria, que era bonita como uma laranjeira. ´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.
Leila Silva

sábado, 7 de agosto de 2004

Ato solene

O mundo é um lugar perigoso
O gozo pode vir atrasado
O salário
Nem se fala
Cala projetos
Adia sonhos

Não tô nem aí

´Tomorrow is another day`
Dizia Scarlet.

Um gozo atrasado é ainda?
Please, close the door
Close the mouth
Close a pobre dialética
E vá ver se estou na esquina.

Leila Silva

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

A dama de Luxemburgo

[Série vizinhos]

Vivo num prédio branco de sete andares com um desses elevadores antigos que a gente vê em filmes franceses (normalmente); a gente fecha uma porta, depois fecha a outra, depois aperta o botão e umas vezes ele funciona de imediato, outras não. Um charme! Quando não funciona é preciso recomeçar a operação, isto é, abrir uma porta, depois a outra, depois fechá-las ….PLAC PLAC…e apertar de novo o botão. Eu, por motivos óbvios , prefiro as escadas. Mas, vivo no segundo andar, quem vive no sétimo prefere brigar com as portas. Quando se sai do elevador, não se pode esquecer nunca – sob risco de linchamento – de fechar ambas as portas, do contrário, o elevador ficará lá paradão. Os velhinhos, com razão, ficam super irritados, quando escuto os gritos ‘ascenceeeeuuur!’ corro lá, como uma boa samaritana, e resgato o elevador para eles.
No sétimo andar vive uma senhora luxemburguesa de mais de setenta anos. Todos os dias, pela manhã e pela tarde, verão ou inverno, ela sai com a cachorrinha. Muitas vezes nos encontramos no hall da entrada e, nesse caso, é melhor preparar as orelhas porque ela adora uma prosa. Felizmente, na maioria das vezes, o assunto é interessante, ou melhor, ela tem um tom interessante e é irresistivelmente irônica…A verdade é que eu adoro ouvir estórias. Um dia eu desci com o propósito de ir ao banco, encontrei-a com a cachorrinha que se chama ficelle, tanto falou a Madame luxemburguesa que, quando cheguei ao banco as portas já estavam fechadas.
Mas vejam que a sua estória era bem mais interessante que a operação que eu devia fazer no banco. Disse ‘je suis une fille naturelle’ e explicou, desnecessariamente, o que significava: ela desconhecia o pai. Quando ela estava com uns quatorze anos a sua mãe casou-se com um homem jovem e bonito, “Le plus beau du village”, disse. A juventude e a beleza do rapaz obcecaram a tal ponto a mãe que ela passou a maltratar a filha por ciúmes. Vou fazer a estória mais curta para não perder o leitor, o caso é que os avós tiveram que vir resgatá-la do inferno. Entretanto, acrescentou a luxemburguesa, era tudo na cabeça da mãe porque o rapaz era um gentleman e nunca encostou um dedo nela. Vivia bem com os avós até que os nazistas invadiram luxemburgo (que era, como a Bélgica, país neutro, mas isso era apenas um detalhe para Hitler) e os vizinhos, vendo a em casa, disseram aos avós “É preciso arrumar um trabalho para essa menina porque os alemães estão levando todos os ociosos.” Assim, por força das circunstâncias, arrumaram-lhe um lugar no hospital e ela tornou-se enfermeira até poucos dias atrás quando se aposentou.
Ao lado do apartamento da luxemburguesa vive um chileno, e foi por causa dele que ele começou a falar-me da infância infeliz, da invasão alemã, da mãe ciumenta….Isto é, o chileno é odiado no prédio e mais ainda por quem vive no mesmo andar. Eu tentei fazer uma fraca defesa do chileno dizendo que talvez ela tivesse sido torturado por Pinochet e bla bla bla….Ela disse, muito firmemente, que isso não justifica as grosserias dele e narrou a própria desgraça com requinte de detalhes. Descreveu até os riachos de Luxemburgo mas tenho certeza de que ninguém está disposto a perder o encontro no banco e, tenho que confessar, ela narra muito, mas muito melhor que eu.

Leila Silva


segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Ser

Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno relapso e já não sou mais.

Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.

Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas e a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a dona do barraco vem nos encher o saco e nos dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.

Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?
Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar dizendo que prostituta é atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.

……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.

Leila Silva

PS: O O cenário não é a Bélgica mas, como ando sem tempo de rever os outros, decidi postar esse que deveria estar em um Cadernos de Londres.