sábado, 30 de abril de 2005

Canindé e os obscuros caminhos da fé



A Canindé alguns vão a pé, percorrem o caminho da redenção de sandálias havaianas, chinelas de couro ou nada, ou seja, plantam no solo árido e seco do sertão a sola do pé curtido pela miséria e trabalho ingrato.

Nós percorremos o caminho de Canindé de carro mesmo, durante o trajeto, Padre Rafael nos explicava que seu Ceará é surreal, ali há pontes sem rio e rio sem pontes. Assim mesmo! Um dia, disse, viajava com um padre europeu e passaram uma ponte, duas pontes, três pontes e nada de água rolando por baixo delas. O europeu conferiu todas pois que tudo olhava atentamente. Chegando no quarto rio ele viu, finalmente, a água mas…não viu a ponte porque ponte não havia ali e tiveram que voltar, suspender o passeio. O europeu coçou a cabeça e riu das pontes sem rio e do rio sem ponte. Como pode? Os outros riram mais ainda e disseram que é assim mesmo, ora!

No caminho, duas mulheres andavam, em sentido contrário ao nosso, uma delas transportava na cabeça, com habilidade e certa elegância, uma grande trouxa, sem a ajuda das mãos; nas paradas dos ônibus, o povo esperava acocorado como os chineses.

O povo de Canindé acredita que São Francisco vive ainda hoje…e ali mesmo, naquele vilarejo, numa casa amarela. E a mancha no dorso do jumento é, para eles, o mijo do menino Jesus. Nem o Padre Rafael, nem ninguém é capaz de provar o contrário.

Na casa dos milagres, ao lado da igreja há um grande mural com fotos de pessoas que esperam ou alcançaram uma graça. Várias crianças nuas e até mesmo adultos mostram as partes do corpo conforme a graça recebida, assim vemos seios expostos, ventres, as pernas com as feridas, só os rostos, uma noiva com ar desconfiado e seu noivo….alguns deixam junto com a foto uma nota explicativa, mas não são muitos. Uma dessas notas trazia um retrato três por quatro à direita, outro à esquerda, uma imagem de Santo Antônio no meio e dizia:
‘Mercearia Santo Antônio – Eu moro em Teresina – PI na rua Bento C. Basto, no São João, e me peguei com São Francisco, para não perder o juizo (não ficar louco) porque eu perdi o meu filho Sérgio, com dezoito anos, num acidente de carro, todos os anos ele viajava para Canindé quando era vivo. Eu fiz a promessa se ficasse bom eu levava meu retrato e o dele e botava na casa dos milagres. Minha mercearia ficou quase acabada, então eu incluí no meu pedido que salvasse o meu comércio que eu levaria uma foto agradecendo, e estou deixando aqui meu testemunho, e agradecimento.
Alcancei a graça
Bendito o que vem em nome de Jesus.
Canindé, 4 de outubro de 2003
Antonio polícia.

Canindé e seus confessionários com ar condicionado que retêm ali as velhas e seus pecadilhos, por horas e horas. Canindé e o São Francisco vivente. Canindé, o simpático Padre Rafael e sua namorada morena. Canindé, minhas impressões de um dia, uma fotografia, um mundo entre nós....

Canindé e os obscuros caminhos da fé.



Escrita para Anjos de Prata.

Leila Silva


quarta-feira, 27 de abril de 2005

A Ostra e o Vento

Li na semana passada, seguindo sugestão do amigo Manoel Carlos, o belíssimo e poético A Ostra e o Vento. A narrativa, ou melhor, o clima é quase onírico e há sensualidade em cada linha, nada parece ser escolhido ao acaso, nem os nomes dos personagens: Marcela (Mar cela), por exemplo, nem as palavras para descrever os mesmos personagens ou a ilha.

Confesso que precisei do empurrão do Manoel Carlos para conhecer esta obra, às vezes, durante a leitura eu me perguntava, ‘Como pode um livro destes não ser mais conhecido?’, mas suponho que ele seja bastante conhecido no Brasil, já foi, inclusive adaptado para o cinema(estou procurando o DVD) por Walter Lima Jr., em 1997.

Quem quiser saber mais sobre o autor encontrará informações no Agreste ou no website da Editora Quartet.
A primeira edição do livro data de 1964, eu tenho aqui a sétima edição que é de 2000 e traz um prefácio do pesquisador americano Michael Fody. Copio aqui uma pequena parte deste prefácio:

“Considero importantes todos os romances de Lopes, mas se eu tiver que apontar um como merecedor do título de obra-prima, proporia sem hesitação A Ostra e o Vento.”



A ostra e o vento
Chico Buarque/1998Para o filme A ostra e o vento, de Walter Lima Jr.

Vai a ondaVem a nuvem
Cai a folha
Quem sopra meu nome?
Raia o dia
Tem sereno
O pai ralha
Meu bem trouxe um perfume?
O meu amigo secreto
Põe meu coração a balançar
Pai, o tempo está virando
Pai, me deixa respirar o ventoVento
Nem um barco
Nem um peixe
cai a tarde
Quem sabe meu nome?
Paisagem
Ninguém se mexe
Paira o sol
Meu bem terá ciúme?
Meu namorado erradio
Sai de déu em déu a me buscar
Pai, olha que o tempo vira
Pai, me deixa caminhar ao ventoVento
Se o mar tem o coral
A estrela, o caramujo
Um galeão no lodo
Jogada num quintal
Enxuta, a concha guarda o mar
No seu estojo
Ai, meu amor para sempre
Nunca me conceda descansar
Pai, o tempo vai virar
Meu pai, deixa me carregar o vento
VentoVento, vento

domingo, 17 de abril de 2005

Quando Carla me visita - Parte II

Lembro-me de ter passado por Avignon e de lá ter tomado um trem que saiu atrasado, o fato não teria me marcado não fosse uma lição antiga de francês cujo diálogo eu ainda tinha na memória e que se passava ali, naquela mesma cidade. Era mais ou menos assim: Um italiano, dentro do trem, pergunta as horas para um francês e este lhe diz educadamente as horas e ainda acrescenta que o trem está partindo na hora certa…. ‘como sempre’, o italiano, resignado como eu nunca encontrei na vida real, responde “Não é como no meu país, então”. ‘Esses franceses e seus métodos de ensino!’ Pensei enquanto ouvia o alto-falante anunciar o atraso….E assim, pouco a pouco, fui percebendo a diferença entre a França real e a França das aulas de línguas. O processo pode ser chamado de desmistificação.

Carla contava histórias do Brasil, de Campinas, relembrava o passado comum mas não senti sua amiga interessada em partilhar das lembranças. Talvez Carla não se importasse, queria relembrar ainda que só, ou talvez não percebesse. Ou sera aque eu estava vendo coisas? Deixei-a com a amiga e voltei para Bruxelas, durante a semana empacotei os poucos pertences e fui para outro apartamento, em um lugar muito mais agradável. Lá tinha aquelas janelas no teto, eu gostava de acordar e ver o céu, quando nevava, eu gostava de ver a neve se acumular.

Quando Carla voltou, o computador ainda estava numa caixa esperando para ser montado, ela explicou que era expert em montar computadores, se eu quisesse….Sugeri que fôssemos a uma boîte ao invés disso. Ela aceitou.

Na Bélgica há mais de quatrocentos tipos de cerveja, Carla queria experimentar todos em seus poucos dias. Virou lenda, até hoje há quem me pergunte a respeito daquela moça que queria experimentar todas. E olha que os belgas são bons de copo.

Chegou o dia de ir embora. Ouvindo-a fazer as malas, dei graças a Allah que a minha vizinha era espanhola e não alemã. Carla passou a noite toda fazendo e desfazendo a bagagem, no dia seguinte ainda me disse: “Como você vai logo ao Brasil e não vai ter muita bagagem, podia levar essas coisas aqui pra mim.” Mas quem disse que eu não teria muita bagagem? Concentrei me: ‘Primeiro Saramago. Primeiro Saramago. Primeiro Saramago.’ “Ok, eu levo.”

E Carla se foi.

sábado, 16 de abril de 2005

Quando Carla me visita - Parte I

Isso foi em 1996, não me lembro o mês, mas sei que era verão na Europa. Carla e eu tínhamos trocado algumas cartas, cartas mesmo, das antigas, dentro de envelope e com selos, agora ela vinha, pela primeira vez, à Europa e decidiu começar sua viagem por Bruxelas porque eu estava ali. Aceitei tudo sem refletir muito e sem perguntar exatamente o que ela queria fazer. Estava bastante perdida por essa época. Eu estava perdida, Carla não, estava quase terminando seu doutorado em economia na UNICAMP e isso a realizava em muitos sentidos. Ela tinha namorado uma de minhas amigas, acho que era por isso que eu a conhecia. Essa minha amiga, entretanto, preferia ver o diabo a rever Carla. Não quis saber dos detalhes do gran finale.

Então ela estava chegando naquele 96 e eu estava vivendo em um apartamento pequeno e deprimente. Pertencia a uma família grega que morava no primeiro andar, uma senhora gorda e simpática, um senhor que passava muito do seu tempo na Grécia, um rapaz branco, magro e bobo e uma moça arrogante e não menos boba, só que ela parecia não saber disso. Ficava na rua Gallait, perto da Gare du Nord, certamente um dos piores, ou pelo menos um dos mais tristes lugares da cidade. Era o que minha irmã tinha nos arrumado provisoriamente, enquanto a gente decidia o que fazer da vida. Ela já tinha decidido mais ou menos, de uma hora para outra fez as malas e rumou para Lisboa, ali fiquei, inquilina dos gregos, naquele rua onde o bonde passava cedo fazendo barulho e onde os marroquinos adolescentes e nem-tão-adolescentes se esmurravam de vez em quando. Eu não me importava, só tentava deixar o apartamento limpo e organizado para amenizar a sensação. Que sensação? Vou pensar a respeito.

Contei a Jean-François que ia receber uma amiga brasileira e, para florear um pouco, contei que ela era quase doutora em economia. “Uma economista brasileira, isso eu quero ver!” Não entendi e ele explicou que estava fazendo uma piada, era uma referência à dívida brasileira, depois de explicado eu não achei a menor graça. E não foi por orgulho nacionalista.

Fui esperar Carla no aeroporto, ela apareceu tarde, sem as malas e com um cobertor roubado da KLM entre os jornais. Era para uma amiga que colecionava cobertores das companhias áereas. Explicou. As malas? Estas tinham ficado em Amsterdã, só estariam disponíveis no dia seguinte. Fomos para o tal apartamento e logo perguntei se ela queria tomar uma ducha. Eu tinha essa mania, mal descia do avião e corria para a ducha. Carla disse: “Mais tarde” e continuou a falar. Muito mais tarde, ela falava ainda e perguntei, de novo, se ela queria tomar o banho, “Não”. Na terceira vez ela disse que eu podia ficar sossegada que ela só ia tomar o banho na manhã seguinte. Fiquei sem graça.

No outro dia buscamos a sua mala, visitamos Bruxelas, Bruges e planejamos uma viagem a Paris. Eu estava preocupada com meu visto que estava por vencer e Olivier propôs levar-nos de carro até Lille, lá tomamos o trem para Paris. Fazia calor, fui no banheiro da estação colocar um vestido leve. Carla disse que eu devia usar mais vestidos. Depois fomos para o hotel de terceira categoria que eu tínha reservado, não foi difícil encontrar, perguntando aqui e ali. Como Carla disse que era “muito boa de direção”, eu não prestei atenção nos caminhos e, quando voltamos para o hotel, tarde da noite, tive que sair perguntando de novo, ela não tinha a menor noção do lugar. Descobri que Carla mostrava muita segurança com relação a coisas que não sabia e decidi confiar um pouco menos no seu senso de orientação.

Uma noite decidimos jantar espagueti, Carla colocou todo o parmesão da mesa, que não era pouco, no seu prato e pediu que eu dissesse ao garçon que ela queria mais. Às vezes, o papel de tradutora pode ser embaraçoso. Pela manhã ela quis comprar uma dessas malas de rodinha pois só tinha mochila e suas costas não podiam suportá-la. E procuramos e procuramos…

Depois de vistarmos Paris tomamos um trem e fomos para Montpellier onde ela deveria encontrar uma amiga da Unicamp que estava fazendo parte do doutorado ali. A amiga a esperava com tapetes vermelhos estendidos e ciumenta porque ela tinha ido primeiro em Bruxelas. Não encontrei a amiga tão animada e acolhedora. Porque há gente assim, sempre tão necessitada de exageros? Ter que exagerar no afeto de um na esperança de que outro a queira mais? Não sei como analisar? Carla exagerava em tudo, talvez fosse simplesmente parte de sua natureza. Eu gostava de muitas coisas nela, ela era inteligente, não um gênio, mas inteligente e alegre, ria muito. E, a melhor lembrança, ofereceu-me meu primeiro Saramago, levantado do Chão e também um Neruda.

quinta-feira, 14 de abril de 2005

Lendo: Mutarelli

O Natimorto

De Lourenço Mutarelli. Desenhista, recebeu 12 vezes o prêmio HQMix, mais importante prêmio da HQ brasileira. Do mesmo autor já li: O cheiro do ralo, seu primeiro livro (2002) que será transformado em filme, roteiro de Marçal Aquino. Mutarelli participa ainda, com suas ilustrações, do filme Nina de Heitor Dhalia.

Leila Silva

domingo, 10 de abril de 2005

Cadernos do Oriente - Uma “concubina macho”


Publico aqui mais um conto de Pu Songling. Já publiquei uma pequena biografia do autor em 11-04-2004, juntamente com a tradução de outro conto, o Mural, muito diferente deste que publico agora. O Mural é um conto fantástico e muito lindo, na minha opinião, este que publico aqui é, no mínimo curioso e engraçado.


Uma “concubina macho”

Pu Songling (1640-1715)

Um homem estava tentando comprar uma concubina em Yanghou. Visitou várias famílias e não encontrou nenhuma moça a seu gosto. Um dia, ele encontrou uma velha senhora tentando vender a filha adolescente, ela era linda e habilidosa em diferentes artes. O homem ficou satisfeito com ela e pagou um alto preço à senhora.

À noite, sob a coberta, ele sentiu que a pele da moça era extremamente suave e lisa, tocou suas partes inferiores e percebeu, surpreso, que sua nova concubina era, na verdade, um garoto. A velha trapaceira tinha comprado um bonito menino e o vestira de menina. Pela manhã ele mandou seus empregados procurarem pela velha, mas ela não foi encontrada. O homem estava muito frustrado e não sabia como resolver o problema dessa ‘concubina macho’.

Ele contou essa história a um amigo de Zhejiang que tinha acabado de passar nos exames imperiais e ia se tornar um oficial do império. Este homem deu uma olhada no garoto e comprou-o pelo mesmo preço que o outro pagara à velha trapaceira.


In Strange Tales from the Liaozhai Studio by Pu Songling.
People’s China Publishing House.

terça-feira, 5 de abril de 2005

Biografias

Não resisto, de vez em quando tenho que ler uma biografia de personalidades que respeito, principalmente escritores. Uma amiga que ensina literatura diz que isso é a maior bobagem e outra, que também ensina literatura, diz que é bobagem ler só biografias de personalidades que respeitamos. Ela, por exemplo, quando me contou isso disse que estava lendo a biografia do Ratinho e que isso podia ser importante para o seu trabalho….Felizmente, para mim, a biografia do Ratinho não é relevante.

Estou lendo a biografia de Virgínia Woolf escrita por seu sobrinho Quentin Bell. São dois volumes que dão mais ou menos quinhentas e cinquenta páginas…É verdade, biografias tem um quê de brega mesmo, muitas vezes me pergunto porque não me contento com a leitura das obras. O escritor preferiria isso, eu suponho. Mas é difícil resistir, deve ser o mesmo fenômeno que leva as pessoas a seguirem Big Brother. Ou não.

E o que de tão útil eu já aprendi nas 163 páginas lidas? Vejamos, o que me surpreendeu foi saber que V. Woolf contemplou a possibilidade de casar-se com Lytton Strachey, aliás, ele também, não só pensou como chegou a pedir a mão da moça em casamento, mas, no momento mesmo em que fazia o pedido já começou a se arrepender. Ela percebeu e ajudou-o a sair do embaraço. Lytton Strachey é aquele escritor inglês por quem a pintora Carrington* (do filme homônimo, 1995) foi perdidamente apaixonada, tão apaixonada que não sobreviveu à morte dele. Segundo o sobrinho, a homossexualidade de Lytton, ao invés de representar um problema era mais uma espécie de alívio para Vírginia. Informações interessantes mas não exatamente úteis, não é mesmo? Não se pode negar o lado voyeurístico desse tipo de leitura.

Evidentemente, este é apenas um ponto, há outros como as crises de nervos e as preocupações com as injustiças com relacionadas ao fato de ser mulher. Virgínia foi educada em casa, nunca teve educação formal enquanto os irmãos foram para a escola, se prepararam e foram para Cambridge. Era normal que ela, mulher inteligente, se ressentisse e isso percorre a sua obra.

*Interpretada por Emma Thompson.

Virginia Woolf – A Biography By Quentin Bell


Leila Silva
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“Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.”

Mário de Andrade
Prefácio Interessantíssimo.