segunda-feira, 28 de março de 2005

Conto: As coisas tangíveis

Meu conto da Anjos de Prata desta quinzena:



As coisas tangíveis

Bom dia, doutor. Como vai? Eu? Vou bem, muito bem. Cadeira confortável, doutor, gostei. Ahn? Não precisa chamar o senhor de doutor? E como eu vou chamar, então?Wagner? Bonito nome, doutor, quer dizer, seu Wagner, nome forte. Bom, o que me disseram era que o senhor era assim uma espécie de doutor das almas, sabe? Mas está certo, o senhor é uma pessoa humilde, a gente logo vê, daí que não se importa com isso de ser chamado de doutor, admiro o senhor. Olha seu Wagner, eu tenho que lhe dizer uma coisa, com todo o respeito, foram as minhas duas filhas e a minha mulher que me mandaram aqui, o senhor já viu mulher quando mete uma idéia na cabeça, não? Pois é, então, sem querer desmerecer a profissão do senhor, eu acho que eu não preciso, sabe? Acho não, tenho certeza. Eu sou uma pessoa de muitos amigos, muitos, inúmeros e, quando eu preciso conversar eu alugo a orelha deles, que amigo serve pra isso também, né? Inclusive é até melhor, com todo o respeito, porque eu conto um pedacinho pra um, depois outro pedaço pra outro, depois dou uma remendada…Às vezes a gente se esquece de uns pedaços e depois, noutra conversa vai e lembra. Só que agora a mulherada lá de casa resolveu que eu tinha que vir aqui conversar com o senhor. O porquê? Bom, doutor, eh, seu Wagner, o senhor, nesse caso, tinha que chamar era elas aqui pra conversar….O que é que ‘eu’ acho? Sei lá, minhoca que elas botaram na cabeça. Disseram que eu ando estranho, agora, seu Wagner, eu me pergunto e pergunto pro senhor, na minha idade, eu não tenho direito a umas estranhezas? Ah, então o senhor concorda comigo? Olha, eu trabalhei duro, fui e sou um bom pai, pode perguntar lá para as minhas filhas que elas não vão negar isso. Elas foram para a universidade, todas duas, me encheram de orgulho, claro….Assim como o pai do senhor também deve ter ficado orgulhoso em ver o filho doutor. Que pai não fica feliz? Mas é isso, e aí, agora, juntaram lá as três pra pegar no meu pé. Mulher, às vezes, pensa demais. Pra quê? Veja, se eu tô estranho, espera passar…Não, não aconteceu nada. Nada, nada, só imaginação demais, sabe? É só um papel sem importância que a minha mulher achou nas minhas coisas, acho que é por isso que elas andam assim em polvorosa. Tempestade em copo d’água, seu Wagner, um bilhetinho sem importância. Nem era bem um bilhetinho, umas palavras que me deu vontade e eu escrevi assim…Me dá até vergonha de falar disso, seu Wagner. Isso eu não conversei nem com amigo nem com ninguém. Virou esse escarcéu por umas palavrinhas de nada, doutor, eu lhe juro. Pra quem eram essas palavras? Pra mim mesmo, ora, mas elas estão achando que é pra alguém, pra uma mulher…Sabe o que é, seu Wagner, já que eu comecei mesmo esse assunto, eu escrevi sim, é verdade, para você, meu amor e pus um nome, mas é o nome que eu chamava a minha mulher quando a gente ainda era novo, só que ela se esqueceu e eu não quero mais falar disso com elas, assunto encerrado, não sei porque tanto barulho por causa de umas rimas. Acredite em mim, seu Wagner. Ciumenta, a minha mulher? Nunca foi e nem é agora…só está curiosa. Quer entender, entender o quê…que ela não tem mais memória? No final das contas não tem nada, o senhor sabe da capacidade das mulheres pra inventarem uma história, pois foi isso, por causa de uns versinhos bobos fizeram isso…Se a minha mulher sentisse um ciumezinho, seu Wagner, até que ia ser bom, só que ela ia estar com ciúmes dela mesma, ciúmes do que ela foi e se esqueceu que foi, entendeu?

Leila Silva

sexta-feira, 18 de março de 2005

Senso

Il pleut… il pleut, bergère…

Tomei chuva em Seattle, em Minas, em São Paulo…. Chovia pra todo lado, só nesse meu blog é quem tem chovido pouco. Paciência, caros, parcos, mas valiosos leitores!

É amigos! (que a maioria já se tornou amigo)….

Pois bem, amigos, andei por aí encasquetada com problemas de toda ordem e de ordem nenhuma, viajando, reformulando conceitos, reafirmando crenças e não-crenças. Andei apertada mesmo e nessas horas a gente (gente assim que nem eu) pensa: ‘Porra, até que ia ser bom se existisse mesmo esse tal de deus, podia até ser o Ganesha que eu não tenho nada contra aquela aparência, aprendi um pouco a conviver com ele na Ásia, bem intimamente até. Por uns meses dividimos apartamento com um rapaz malaio que rezava para Ganesha, punha incensos, bananas…Podíamos comer a banana, se quiséssemos, contanto que pedíssemos autorização a Ganesha. P. não gostava muito porque dizia que a banana ficava com o gosto da fumaça do incenso. Outra coisa que o rapaz malaio nos avisou e que não se podia ficar pelado na frente do deus. Não sei por que razão mas ele não gostava. Então, o que eu ia dizendo, seria ótimo se, em certas horas a gente pudesse colocar tudo nas mãos de deus e descansar, não é? Mas, pensando bem, eu não sei se Ganesha é esse tipo de deus que aceita que a gente jogue tudo nas mãos dele…
O fato é que não posso colocar nada nas mãos de deus nenhum porque meu ateísmo é quase uma religião e quanto mais deuses vejo, menos acredito em um.

O pior de tudo é que esse blog não nasceu pra isso, não era para eu abrir aqui meu coração. Queria a ficção mais pura. Existe?

E aqui termino esse texto sem Sexus, Plexus, Nexus. Amém.

Leila

domingo, 13 de março de 2005

La Cucaracha

Estou relendo o Diário de um Cucaracha, do Henfil…Meu irmão disse que eu tinha que reler o livro agora que eu vivi a experiência de cucaracha. Obedeci e cá estou, ainda na página 85. Fiquei pensando que, se fosse hoje, o Henfil teria feito um blog…achei os textos com cara de Post. E com todo o respeito.

Já ouvi dizer que fizeram duas versões deste livro, uma com a foto, muito realista, da barata e uma edição, soit disant, feminina, sem a barata. A edição que eu tinha, há uns 15 anos, era com a bendita barata, alguém me deu de presente ou me repassou o livro, não me lembro mais e, tampouco, sei onde o livro se encontra hoje. A edição que estou lendo agora e que meu irmão comprou no sebo (vai ver é o mesmo livro dando voltas) traz também a barata horrorosa. Isto para dizer que nunca nunca vi essa edição sem a barata….

O livro é bacana, engraçado e por vezes triste. Foi escrito quando Henfil estava nos Estados Unidos procurando um tratamento por causa da famosa hemofilia, em 1973.

Bom, aqui encontrei uma das melhores explicações para Thanksgiving, eu também tinha dificuldades em entender esse dia, como todos os estrangeiros. Segundo Henfil:

“Impressiona mesmo é ver este traço da forte e preservada cultura Americana. A história parece que começou no tempo dos pioneiros, que, um dia, vendo que finalmente tinham conquistado e dominado a terra (dos índios), resolveram das graças a Deus. Isto há mais de um século. Aí fizeram um festão e foram convidar quem? Os Indios. Que, Segundo a gravura dos livros escolares, estavam ressabiados olhando a alegria religiosa dos novos senhores da terra. E, nessa primeira festa, o peru foi acompanhado por uma frutinha vermelha que serviu muitas vezes de alimento para os pioneiros esfomeados. Pois bem, Zé, esta frutinha nativa foi conservada no hábito da festa e até hoje é comida junto com o peru. Mas é ruim, quase intragável.”

Bom, a tal frutinha a que ele se refere é cranberry, a fruta em si não é ruim* mas o modo como a preparam para o tanquisguívim* é mesmo quase intragável.

É isso, volto à minha leitura.


*Bem, me parece que hoje em dia existe no Brasil
*Grafia de Henfil.


leilasilva100@hotmail.com