sábado, 27 de novembro de 2004

Silêncio

[Este conto foi escrito para a Anjos de Prata e foi baseado no perfil de uma colega do curso de Letras]


Agora está tudo pronto, já vendi a moto e comprei o que precisava. Já reuni, inclusive, a coragem. Eu quero o silêncio, só isso. Você vai se assustar, não, mamãe, vai se assustar com isso de eu querer o silêncio. Justo eu que botava a esguelada da Janis no máximo. Quem a chamava de esguelada era você. Pois é, mamãe, acabou. Quase. Quando você chegar da sua viagem, tudo estará acabado. É triste mas é assim e não é culpa de ninguém, só desse demônio que me ronda. É simples, eu não nasci para viver, fui carregando até aqui mas não dá mais. Até parece desprezo para com o seu esforço hein, mãe? Você que me disse tantas vezes que eu te devo a vida….mas, honestamente, eu nunca me senti devedora, eu nunca gostei do mundo, eu não pedi nada, eu não existia quando você tomou a decisão. Quem existia era você e sua vontade de ser mãe, de gerar um ser que cuidasse de você na velhice, que te desse netos, que falasse doce, que fosse uma mulher moderna mas não excêntrica e eu vim assim, estranha, parece que vim para te contrariar. Sinto muito, dona Gertrudes. Netos? Ainda que eu gostasse de homem – e você já sabe que não - ainda que eu gostasse, eu nunca ia gerar filhos, never, ever. Como, se não sei cuidar nem de mim? Não, não tive filhos para não deixar-lhes a herança da miséria humana. É assim mesmo a tal da frase?

Eu estou aqui (e quando você ler isso será ‘eu estava aqui’. Engraçado isso de escrever pensando que, quando você estiver lendo estas linhas o presente já não será mais presente. Raciocínio besta, é claro que não, ainda que eu, porventura estivesse viva quando esse papel caísse nas suas mãos, ainda assim, esse momento não seria presente. Ai, acho que já bebi demais, mãe. Mas eu não pretendo estar viva quando você estiver lendo, por isso eu poderia escrever o que quisesse, mas eu tenho um coração, mãe, tenho sim e estou morrendo de pena de quando você chegar e deparar com a minha carcaça ali ou aqui, ainda não escolhi. Não tem outro jeito, não sofra demais.)então eu estou aqui tentando fazer a coisa bem feita. Eu sempre soube que quando o fizesse eu o faria bem feito.

Eu tentei, tenho mais de trinta anos, não caibo em lugar nenhum, juro que tentei. Quem sabe se fosse outro século, um século mais certinho, onde tudo estivesse definido, em que a gente não estivesse a par de todas essas facetas do ser humano, tudo está escancarado e não é bonito de ver, não, não aqui da minha perspectiva. Ou, quem sabe, um século clean como dos filmes de ficção científica….Tudo lenga-lenga, né? Deve ser mesmo. Eu desejo o silêncio mais profundo que há, o nada. Você já reparou que as pessoas têm medo de mim? E eu nem entendo o porquê. Sabe como me chamam lá na universidade? Lana Joplin. E eles pensam que eu não sei, tudo nas costas, riem os babacas. Que se riam! A caravana passa. Fico um pouco curiosa sobre o depois, o que vão pensar, se vão me detestar. Há muitos anos, um amigo que estudava medicina disse que com um tiro na boca, bem no céu da boca, não há jeito de errar Eu não vou errar, não desta vez. Já errei tanto.


Leila Silva
(28/09/2004)

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Elegia

Pessoal, o meu querido amigo Vivaldo teve um conto publicado na BESTIARIO - Revista de Contos - Brasil www.bestiario.com.br.
Confiram, vale a pena. Titulo do conto: Elegia.

Sobre o autor: VIVALDO LIMA TRINDADE é editor da Verbo21 www.verbo21.com.br
sítio literário, e contista. Tem dois livros inéditos, Todo Sol mais o Espírito Santo e O Supermercado da Solidão.

domingo, 21 de novembro de 2004

Cadernos do Oriente

[Conto de Wu Jun (459-520), China. Traduzido a partir da Edição espanhola: Cuentos Fantásticos Chinos, Seix Barral.]

Na prefeitura de Yangxian, deu-se o caso de um homem chamado Xu que atravessava as montanhas levando nas costas uma gaiola de gansos quando encontrou um estudante no caminho. O rapaz estava caído e perguntou-lhe se podia ser carregado na gaiola porque tinha os pés machucados. Xu não o levou a sério e ainda ria quando o rapaz entrou na jaula sem diminuir de tamanho e sem que a jaula aumentasse de volume, ajeitou-se entre dois gansos sem causar-lhes nenhum incômodo ou medo.Xu voltou a carregar a gaiola pois, apesar da sobrecarga, não sentiu que ela pesava mais. Percorreram um trecho até chegarem a uma árvore baixa e ali Xu decidiu parar para descansar.
O estudante saiu da jaula e disse:
- Se não houver nenhum inconveniente, gostaria de preparar para nós uma comida simples.
- Claro! Respondeu, encantado, o viajante.
O estudante sacou, então, da sua boca uma grande caixa de cobre e de dentro da caixa foi tirando um prato depois do outro, já preparados. Um infindável e delicioso banquete.
- Queria dizer-lhe – disse o estudante depois de uns tantos copos de licor de arroz – que a verdade é que não viajo só, trago comigo uma mulher escondida e gostaria de convidá-la a sentar-se conosco, se isto lhe convier.
- Claro! Disse, mais uma vez, Xu.
O rapaz tirou da boca uma moça, vestida com uma elegância extraordinária e mais bela que todas as mulheres. Continuaram a comer e a beber até que o estudante, sentindo-se cansado e embriagado, deitou-se num canto e dormiu. A mulher aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que eu seja sua mulher, detesto este homem. Por isso, não vou só, trago comigo um homem escondido. Agora que meu marido está dormindo pesado, gostaria de vê-lo. Não dirá nada a meu esposo, não é mesmo?
- Claro que não. Respondeu Xu.
Ela tirou, então, da sua boca, um homem de uns vinte e três ou vinte e quatro anos, inteligente e amável, que esteve conversando animadamente com Xu, até que o estudante pareceu despertar. A moça tirou rapidamente um biombo da sua boca e atrás dele escondeu o amante. Ao mesmo tempo foi chamada pelo marido que, langoroso, puxou-a para deitar-se ao seu lado. O amante aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que seja uma mulher de bom coração, o meu amor não é só para ela, por isso não vou só, mas trago comigo uma mulher escondida. Agora que a outra está dormindo, gostaria de vê-la, você guardará segredo?
- Claro! Respondeu Xu.
Tirou da boca uma mulher de uns vinte anos de idade e continuaram bebendo, comendo e conversando os três até que ouviram ruídos vindo do lado onde estava o outro casal. Rapidamente o rapaz engoliu a mulher. No mesmo instante, a esposa do estudante saiu de detrás do biombo e disse:
- Meu marido está a ponto de acordar. Engoliu rapidamente o amante e ficou a conversar com Xu.
O marido acordou, finalmente, e disse:
- Acabei por dormir muitas horas. Desculpe tê-lo deixado só, você deve ter se aborrecido bastante. Bom, já está quase noite, teremos que nos despedir.
Colocou na boca a mulher e também todos os pratos, talheres, vasilhas. Só não engoliu uma grande bandeja de cobre:
- Como não tenho nada de valor a oferecer-lhe, deixo-lhe isto como lembrança do nosso encontro. Disse o estudante a Xu.

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Muito mais tarde, exatamente no ano 376, Xu foi elevado ao posto de bibliotecário imperial e teve ocasião de mostrar a bandeja ao vice-ministro Zhang. Este, examinando o objeto, descobriu uma inscrição que indicava ter sido ele fundido em 58, durante a dinastia Han.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

Elizabeth Bishop

Ontem à noite peguei, no meio da minha bagunça atual, um livro que comprei no sebo por uns dolarzinhos de nada, em Atlanta. O título é The Collected Prose, Elizabeth Bishop. Comprei o livro mais por curiosidade, sempre ouvi falar da Bishop poeta (ou poetisa, como queiram), os contos eram novos para mim. Além disso, essa autora Americana chama a minha atenção por ter vivido no Brasil por quinze anos ou mais. O conto que li ontem fala, justamente, de uma época em que ela viveu em Ouro Preto, o título do conto é, To the botequim and back.
Ela vai descrevendo tudo o que encontra pelo caminho na sua ida ao botequim para comprar leite. É muito interessante e é sempre bom – eu acho – observar o olhar do ‘outro’ sobre o Brasil.
Um exemplo desse olhar atento de Bishop:
“Aqui há um excesso de cascatas; os rios amontoados/ correm depressa demais em direção ao mar,/ e são tantas nuvens a pressionar os cumes das montanhas/ que elas trasbordam encosta abaixo, em câmara lenta,/ virando cachoeiras.”

Mas qual foi a origem dessa relação tão duradoura com o Brasil?
Bishop estava de passagem pelo Rio onde conheceu Lota de Macedo Soares a arquiteta idealizadora do aterro do flamengo, por quem se apaixonou e foi correspondida. Isso a introdução deste livro não explica claramente, nao sei porquê. Há, entretanto, um livro sobre as duas escrito por Carmen L. Oliveira, Flores raras e banalíssimas, da editora Rocco e que já foi traduzido para o inglês. Acho até – já li sobre isso em algum lugar – que pretendem fazer um filme baseado nessa biografia com Emma Thompson no papel de Bishop. Só espero que seja melhor que o filme baseado na vida de Sylvia Plath…

domingo, 14 de novembro de 2004

Londres 95

Da minha janela transparente
a todo instante
vejo um aviao no céu de Londres
A nuvem do verão de Londres é igual à do Brasil
Os velhos de Londres, são mal humorados
Os velhos indianos de Londres, não são não
Os jovens fazem seus beds nas streets de Londres
_Cigarette, please!
Os italianos de Londres, são como os italianos da Itália.
São?
Não sei não.

Leila Silva
Londres, agosto 1995

[Para my dear dear Dani]

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Haicai


A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra


Matsuo Bashô

quinta-feira, 4 de novembro de 2004

Era uma vez um letrado chinês: Pu Songling

[Essa resenha e tradução do conto de Pu Songling foram publicados na Verbo21 há algum tempo atrás. Espero que gostem. Alguns de vocês, eu sei, já o leram quando foi publicado.].


Era uma vez um letrado chinês: Pu Songling


Um dia estava eu revirando uma livraria em Bruxelas à caça de alguma coisa da literatura asiática, qualquer que fosse, mas de preferência, chinesa - estava me preparando para viver na Ásia e não queria chegar no continente completamente ignorante da sua literatura. Assim, deixei que o acaso me guiasse pois não contava com muitos outros meios e o acaso levou-me ao livro “Chroniques de l’étrange” de Pu Songling(1640-1715), contos traduzidos do chinês e apresentados pelo sinólogo André Levy.

Certamente que li a contracapa antes de passar no caixa e empenhar os meus francos (o euro ainda nao existia). Ali o tradutor explicava que esta era uma das obras maiores da literatura chinesa e que a literatura mundial não oferecia nenhum equivalente. Trata-se de uma obra do século XVII mas que só foi largamente difundida na segunda metade do século XVIII e apareceu bem mais tarde no Ocidente, no final do século XIX através de traduções de traduções, evidentemente aproximativas, fragmentárias ou redundantes, como coloca o autor do prefácio e tradutor. Pronto, decidi que os meus francos estariam bem empregados.

Hoje há muitas traduções desse livro de estórias de raposas (seres sobrenaturais), demônios, reencarnação, críticas aos abusos sociais, costumes, etc… Infelizmente não há ainda uma tradução para o português.

No conto O Cão adúltero, Pu Songling narra a estória de uma mulher cujo marido, por conta de suas atividades comerciais, viajava por longo período, chegava a ficar ausente por um ano. Então, para satisfazer as necessidades da carne a mulher ensina alguns truques ao cachorro. Um belo dia o marido chega em casa e o cachorro não gosta daquilo. Quando o marido vai para a cama com a mulher, ele irrompe no quarto, avança no homem, mata-o e toma o lugar que já considerava seu. No vilarejo, todos ficam indignados com a estranha morte e denunciam o caso às autoridades. A mulher vai presa como suspeita, é convenientemente torturada mas nada confessa. Embora o juiz ainda não tenha entendido o X da questão, pensa que ali tem adultério. As penas para adultério eram extremamente severas nessa época (sobretudo para as mulheres), morte lenta e atroz.
O juiz tem a idéia de trazer o cachorro para perto da mulher (baseado lá em algum instinto de juiz). Quando o cachorro a vê, saudoso como estava, já corre pra cima dela. Assim o delito é descoberto. As leis sobre adultério não incluíam nada sobre cachorro, evidentemente. Não sabendo bem o que fazer, deixam o cachorro na prisão junto com a mulher enquanto aguardam decisão dos superiores. Centenas de pessoas subornavam os guardas para que colocassem mulher e animal na mesma cela e oferecessem o espetáculo carnal.
Finalmente o tribunal apresenta a decisão: a mulher e o cachorro são condenados à morte por decepagem.

Como já foi dito antes, a temática é muito variada e esse é apenas um exemplo do que pode ser encontrado no livro de Pu Songling. Alguns outros títulos de contos: O cadáver animado, Wang, o amigo de um humilde pescador, Pelo roubo de um pêssego, O encantador de serpents, o bibliômano, Yingning, a moça que ria …


Para ilustrar melhor o livro, deixo aqui a tradução de um conto, La fresque, feita a partir das traduções francesa e inglesa.

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O mural

Originário de Jiangxi, Meng Longtan se encontrava na capital em companhia do letrado Zhu. Um dia caminhavam os dois sem destino certo por ruas e pequenas travessas quando encontraram um mosteiro com quartos para meditação de dimensão modesta. O lugar estaria completamente deserto não fosse a presença de um velho monge que, mal os viu entrar, compôs respeitosamente as roupas e, cumprimentando os dois visitantes, ofereceu-se para lhes mostrar o seu pequeno refúgio.A sala principal do templo abrigava uma imagem do mestre zen Bhaozhi(1), as paredes laterais eram cobertas por pinturas de uma delicadeza tão fina que se podia tomar por verdadeiras as figuras humanas ali representadas. Na parede da direita, ao leste, estava representada a lenda budista “Ninfas celestes espalhando pétalas”; dentre as ninfas havia uma que especialmente comoveu o coração de Zhu, os cabelos soltos desciam-lhe até a linha fina da cintura (2), as mãos esguias e de dedos longos seguravam uma flor, mas o que mais impressionava o jovem letrado era o sorriso encantador dos seus lábios de cor de cereja e os olhos cintilantes que pareciam endereçar-lhe os mais amáveis e tentadores convites.Tão concentrado estava a contemplar o mural que Zhu não percebeu que perdia o controle de si mesmo; os seus pensamentos tornaram-se tão abstratos que entrou numa espécie de transe. Sentiu o corpo tomar uma nova consistência, como se flutuasse num estranho nevoeiro. Subitamente estava dentro do mural. A profusão das salas e pavilhões fez com que ele compreeendesse que não se encontrava mais no mundo dos mortais. Um velho monge, do alto de uma plataforma, pregava o Dharma a uma multidão de religiosos cujos trajes deixavam à mostra o ombro direito. Zhu misturou-se à multidão. Pouco depois, sentindo que o puxavam furtivamente pela manga, virou-se: Ali estava a jovem dos longos cabelos soltos a lhe sorrir. Ela afastou-se repentinamente e ele a seguiu de perto pelas galerias sinuosas até uma pequena casa, uma vez ali, Zhu hesitou, não ousava entrar. Ela, delicadamente, voltou-se, ergueu a flor e acenou de forma tão convidativa que Zhu não pode resistir. Como não havia ninguém no quarto ele tomou-a imediatamente nos braços sem que ela oferecesse muita resistência. Em seguida ela lhe concedeu os favores mais íntimos. Satisfeita, levantou-se, fechou as cortinas e, avisando-o que não deveria emitir sequer um som, saiu prometendo que voltaria quando a noite caísse. E assim foi, ela voltou nessa noite, na noite seguinte e na outra... até que as suas companheiras aperceberam-se e, combinadas, tanto procuraram que acabaram por descobrir Zhu."Cresce já um pequeno ser no teu ventre, mas tu ainda deixas o teu cabelo flutuar livremente como se fosses uma donzela", disseram elas entre risinhos de troça. Imediatamente lhe ofereceram alfinetes, brincos e fizeram-na arranjar o cabelo à maneira das mulheres casadas. Ela fez-lhes a vontade, envergonhada, sem dizer uma palavra. Depois, uma das jovens comentou com malícia: "Irmãs, vamo-nos porque, evidentemente, estamos aqui a mais". E, rindo, partiram.
Zhu contemplou a sua amada, experimentou a macieza daquela nuvem perfeita de cabelos e admirou a curvatura dos brincos de fénix que lhe pendiam das orelhas. Parecia-lhe ainda mais encantadora do que quando trazia os cabelos soltos. Ninguém no horizonte, entregaram-se ardentemente à intimidade embriagados pela fragância do almíscar e das orquídeas. De repente, antes mesmo que chegassem ao termo, ouviu-se lá fora, no meio de vozes exaltadas, os passos fortes de botas de couro juntamente com um tilintar de correntes. A jovem levantou-se apavorada e espreitou pela janela: era um oficial completamente equipado, a face negra como a laca, correntes numa mão e uma clava na outra. À sua volta estavam todas as donzelas. "Estão aqui todas presentes?", perguntou o oficial. "Sim, estamos aqui todas", responderam. "Se alguma de vós esconde um homem do mundo inferior será melhor que o denuncie. Não criem problemas dos quais ninguém vos poderá defender". "Não há ninguém", retorquiram elas em uníssono. O oficial olhou em volta e, com o seu olhar de águia parecia prestes a dar busca no esconderijo. Tão aterrorizada estava a jovem que a sua face tornou-se mais pálida que a cinza, só teve tempo de dizer: "Rápido, esconde-te debaixo da cama". Quanto a ela, abriu uma porta secreta na parede e desapareceu num ápice. O jovem letrado escondeu-se e ficou prostado, mal se atrevendo a respirar. Não tardou a ouvir o som pesado das botas do oficial a entrar e, pouco depois, a sair do pequeno quarto. Lentamente Zhu voltou a si, recuperando a compostura. Lá fora, o barulho das vozes ia esmorecendo pouco a pouco. Contudo, ele não tinha coragem para sair do seu esconderijo. Passado algum tempo, os ouvidos estremeciam com o som ininterrupto de campaínhas e os olhos ardiam-lhe como dois tições. Apesar do medo e do desconforto destas sensações, não tinha outro remédio senão esperar muito quieto pelo regresso da jovem pois, tão toldado se encontrava seu espírito, que já não sabia de onde tinha vindo...Ao aperceber-se do súbito desaparecimento de seu amigo, Meng Longtan, perplexo, perguntou ao velho monge o que se passara. "Foi ouvir os ensinamentos do Buda", respondeu o monge com um sorriso irônico nos lábios. "Onde?", perguntou Meng. "Não foi longe", atalhou o monge dirigindindo-se ao mural. Chegando-se à pintura o velho bateu na parede com um dedo e perguntou: "Porque te demoras tanto, meu bom patrono?" Imediatamente surgiu no mural a imagem de Zhu, a face descomposta pelas emoções, a cabeça ligeiramente inclinada como se estivesse a ouvir alguma coisa. "Há muito tempo teu companheiro te espera”, prosseguiu o monge. Nesse momento Zhu caíu do mural e ficou prostado no chão, os olhos esbugalhados e as pernas tremendo como bambús. Assustadíssimo, Meng perguntou-lhe o que sucedera. O amigo não sabia o que responder; na verdade, estava debaixo da cama quando ouvira um enorme fragor, como se mil homens tocassem a um só tempo um tambor gigantesco. Apavorado, saíra a correr da câmara para tentar descobrir o que se passava.Os dois amigos voltaram-se para o mural. A jovem continuava de flor na mão mas agora ao invés dos longos cabelos soltos ela trazia um elegante coque, elevado em espiral. Surpreso, Zhu voltou-se para o velho monge e perguntou-lhe a razão. "A ilusão nasce do espírito humano. Que outra explicação poderia lhe oferecer esse humilde servidor?"
Zhu sentiu-se extremamente abatido, Meng estava confuso e abalado. Ambos se levantaram e desceram as escadas que conduziam à saída.

(1) Eminente monge da meditação que viveu durante as dinastias nortistas e sulista (420-589)
(2) Os fato de não levar os cabelos atados significa que ela não era casada.

Leila Silva

Leila Silva

Bruxelas, 31 de Janeiro de 2004

Van Gogh

Em agosto deste ano visitei uma casinha perdida numa das regiões mais feias e mais pobres da Bélgica, Le Borinage. Nessa casinha viveu Vincent Van Gogh nos anos em que meteu na cabeça de ser pastor, como o pai. Lá tentou ajudar os pobres mineiros e desenhou. Não há pintura dessa época e a casinha fica realmente onde o Judas perdeu as botas(1), deve receber pouquíssimos visitantes, honestamente, não há muito que ver e este museu – por assim dizer – é completamente dependente do de Amsterdã, inclusive, as gravuras vendidas ali vêem com o carimbo do museu Van Gogh de Amsterdã com o detalhe de custarem muito menos, às vezes menos da metade do preço. Só me arrependi do que não comprei, aquela japonesa, que deixei para trás, por exemplo não me sai da cabeça. Não há muito que ver, é certo, mas ali viveu Vincent e vale a pena a parada.

A mulher que toma conta desse pequeno museu vive ali mesmo na casa, na parte de cima. Nessa ocasião ela nos mostrou uma foto com os familiares de Van Gogh, na foto havia um rapaz de cachos dourados chamado Théo Van Gogh, não o famoso irmão de Vincent mas um sobrinho-bisneto e ela nos informou que ele vivia em Amsterdã e trabalhava para a televisão holandesa.

Ontem ouvi no noticiário da TV5 que esse Théo Van Gogh foi assassinado, muito provavelmente por um marroquino extremista por causa de um documentário que ele fez mostrando os maltratos a que eram sujeitas muitas mulheres nos países muçulmanos.

(1)Uma amiga espanhola sempre entrava em conflito comigo por causa dessa expressão: Onde o Judas perdeu as botas, dizia que em espanhol é 'onde Jesus perdeu as sandalias' e que e' muito mais lógico assim, que Judas não usava botas naquela época.

Leila Silva