terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Manhã


Parou no sinal e viu, ao lado, a mulher. Não olhava para nada. Esperava. Esperava que o primeiro carro se movesse e aí se moveria também, abandonaria aquele estado. Tudo ao redor inexistia, não podia parar de olhá-la, naquele segundo conhecia tanto dela, dos seus cabelos pretos caídos no ombro. Inalou o ar numa tentativa idiota de alcançar o seu cheiro. Como? Tantos vidros separando os dois e depois dos vidros a poluição, as vidas, aqueles moleques sujos sacudindo desespero em cambalhotas ou gestos de estudada humildade. E em casa Teresa servia o café sempre com as mesmas palavras, parecia um disco de auto-ajuda....quebrado. Uma baboseira sobre ser feliz, cega para o mundo. Cega, surda e feliz, mas não muda.
Num segundo, como se tivesse sentido, a mulher se virou.E o sinal mudou de cor.

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Virginia Woolf – A Biography

Quase um ano para terminar a leitura de uma biografia, a de Virginia Woolf escrita pelo sobrinho Quentin Bell. Falei dela aqui no blog em abril do ano passado.

O retrato da capa desta edição (abaixo) foi feito pela irmã de Virgínia, a pintora Vanessa, uma das pessoas mais importantes na vida da escritora. Só duas outras pessoas terão, talvez, tanta importância para ela quanto Vanessa, o marido, Leonard Woolf e Vita Sackville-West, aquela que inspirou Orlando.

A Virginia retratada aqui é bastante diferente da personagem representada por Nicole Kidman no filme As Horas. Se bem me lembro, na época fiquei emocionada com o filme e ainda li o livro de Michael Cunningham no embalo. Quando revi o filme fiquei menos emocionada e mais desapontada ainda com a escolha de Kidman para o papel principal. Não tenho nada contra a Kidman, mas achei que ela deu uma péssima Virginia. E aquele nariz postiço?! Era como se tivessem que enfeiá-la ao máximo para o papel….Um exagero. A Virginia de Quentin Bell é uma mulher bonita, espirituosa, por vezes quase fofoqueira. Todo mundo sabe que ela atravessou períodos de depressão profunda, crises nervosas, loucura e que numa dessas ela se matou, é nesse lado que o filme se concentra e com o qual eu impliquei hoje. Já ouvi dizer também que As Horas é o pior livro de Cunningham….Não posso julgar, foi o único que li. Não sera o último escritor a se tornar famoso pelo seu pior trabalho. Ainda gosto deste livro dele e da idéia de trabalhar em cima de uma obra de V. Woolf, Mrs Dalloway. É uma ousadia, eu respeito. Se não me engano o livro recebeu alguns prêmios importantes, o Pulitzer, por exemplo.

Foi uma surpresa descobrir que V. Woolf é sobrinha neta da famosa fotógrafa Julia Margaret Cameron (1815-1879). Vi, há muito tempo, numa obscura cidade da Bélgica, Charleroi, uma exposição de retratos feitos por ela. Retratos era a sua especialidade. Outra surpresa, saber que Aldous Huxley fazia parte do círculo dos Woolfs.


Apesar do tempo que levei para ler, foi uma leitura memorável e que, tenho certeza, vai me ajudar na compreensão das obras de Virgínia daqui pra frente.


Virginia Woolf – A Biography
By Quentin Bell

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Mini-conto


Profano

Sofia estranhou aquela consistência. Meteu os dedos na massa e levou-os à boca só para constatar que o gosto também fugia ao comum. O comum era não ter gosto. Entretanto seguira à risca os ensinamentos da mãe.


Padre Rafael apareceu na porta no momento em que ela lambia os dedos. De bermudão. Sofia enrubeceu. ‘Algo errado?’ Perguntou ele se aproximando. Sem esperar resposta, tomou a mão da moça, enfiou-a de novo na massa, lambeu cada um dos seus dedinhos e sentiu o estremecimento do seu corpo. ‘Não se preocupe, filha, estas hóstias ainda não estavam consagradas.’

Ilustração: Nausikaa
Lord Frederil Leighton

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

Saudades de Singapura?

[Começo de ano, difícil resistir às listas, às análises do ano que passou, àquele balanço...Li pouco, muito menos do que devia ou queria. Claro, isso de muito ou pouco é relativo, mas gostaria de ter lido mais. Um dos problemas é que leio devagar. Uma vez até tentei um destes cursos de leitura dinâmica...não me lembro de nada, acho que só fui no primeiro dia. O professor era um americano. Dependendo do livro ou artigo eu até invento a minha leitura rápida, mas daqueles de que gosto mesmo, que leio com prazer, levo muitas horas...Além disso, infelizmente, muito infelizmente, sou uma leitora tardia e às vezes penso que nunca vou recuperar o tempo perdido. Morro de inveja dessas pessoas que ficam se gabando de que aos dez anos já tinham lido 769 clássicos. Eu, nos meus dez anos acho que só conhecia o Irene no céu do Manuel Bandeira e Marcelino Pão e vinho. Há um detalhe, mais importante do que sair lendo tudo é ser capaz de digerir o que se lê...Não sei mais onde li isso: “Ele leu tudo, mas não digeriu nada”. (Um jeito de me conformar, decerto).
Ler, finalmente, não é passar os olhos numa página e poder citar nomes de livros e autores. Penso que uma boa leitura nos transforma em algum sentido. Diz Roland Barthes no seu O Rumor da língua, que ‘A leitura é infinita (...) o leitor não decodifica, ele sobrecodifica.’ E ele compara a leitura a uma hemorragia. Gosto dessa figura. Pois é, não vou fazer o tal balanço, vim aqui para deixar uma crônica que escrevi para Anjos de Prata, tema escolhido por Lady Mhel, Saudade.]
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Saudades de Singapura?

Singapura não é, por assim dizer, aquele lugar que deixa as pessoas nostálgicas e que as leva a correrem à agência de viagens mais próxima para prepararem a viagem. É um lugar artificial, um oriente meio falso e um ocidente mais falso ainda já que ocidente nunca será, apesar dos esforços de alguns nesse sentido.

O inusitado de Singapura começa pelo símbolo, uma coisa chamada Merlion, o nome vem de mermaid e lion – sereia e leão em inglês. A parte de cima é o leão, representando a força, a parte debaixo é um rabo de sereia. O caso do rabo nunca ficou muito claro para mim, aparentemente tem algo a ver com o fato de Singapura ser uma ilha. Um leão com rabo de sereia! Estranho símbolo. Não conseguia ver os dois como uma combinação possível. Imagine-se um leão de cara brava, urrando quase, daí você olha para baixo e dá de cara com um rabo de sereia. Digo ‘rabo de sereia’ porque me disseram que é assim, poderia ser igualmente um ‘fishlion’, metade leão, metade peixe. Outra justificativa para parte deste símbolo é o próprio nome, Singapura que vem do sânscrito Singh, leão e Pura, cidade. Antigamente a ilha era chamada Temasek (cidade do mar) e a infeliz mudança deve-se à miopia de um princípe samatra que jurava ter visto um leão na ilha. Ninguém além do princípe viu este animal ali em toda a história de Singapura mas o nome ficou.

Não é bem saudade o que sinto com com relação a Singapura, guardo em mim uma terna lembrança dos passeios com Misako, minha doce amiga japonesa. Misako ainda vive? Não sei, apesar de jovem, o câncer pode tê-la levado. Caminhar devagar com ela pelo jardim botânico, pela Orchard road, tomar capuccinos juntas, escutar as histórias da sua família, correr da chuva, ter certeza de que da sua bolsa sairia uma sombrinha….Tudo lembranças. Mas guardo, sobretudo, aquele sentimento de descoberta, do primeiro olhar sobre as ruas e as pessoas, da fala e dos gestos. Rio, hoje, da forma ingênua e irritante com que os chineses te cobrem de perguntas: Quantos filhos tem? Por que não tem? Lembro-me dos passeios de bicicleta perto do canal, em Jurong, de quase cair ao tentar pedalar observando as casas e o velho chinês de cabelos longos e brancos, atados no alto da cabeça.

São muitas as lembranças, algumas para sempre congeladas em fotos que não dizem tudo, mas complementam.

Carrego, para sempre, uma Ásia em mim, uma Ásia que começou em Singapura.

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Obs: Singapura, em português oficial, até onde sei, se escreve com S. Em todo caso eu prefiro assim.

Foto: Dragão do mar. Sentosa, Singapura.
Leila Silva