quinta-feira, 5 de agosto de 2004

A dama de Luxemburgo

[Série vizinhos]

Vivo num prédio branco de sete andares com um desses elevadores antigos que a gente vê em filmes franceses (normalmente); a gente fecha uma porta, depois fecha a outra, depois aperta o botão e umas vezes ele funciona de imediato, outras não. Um charme! Quando não funciona é preciso recomeçar a operação, isto é, abrir uma porta, depois a outra, depois fechá-las ….PLAC PLAC…e apertar de novo o botão. Eu, por motivos óbvios , prefiro as escadas. Mas, vivo no segundo andar, quem vive no sétimo prefere brigar com as portas. Quando se sai do elevador, não se pode esquecer nunca – sob risco de linchamento – de fechar ambas as portas, do contrário, o elevador ficará lá paradão. Os velhinhos, com razão, ficam super irritados, quando escuto os gritos ‘ascenceeeeuuur!’ corro lá, como uma boa samaritana, e resgato o elevador para eles.
No sétimo andar vive uma senhora luxemburguesa de mais de setenta anos. Todos os dias, pela manhã e pela tarde, verão ou inverno, ela sai com a cachorrinha. Muitas vezes nos encontramos no hall da entrada e, nesse caso, é melhor preparar as orelhas porque ela adora uma prosa. Felizmente, na maioria das vezes, o assunto é interessante, ou melhor, ela tem um tom interessante e é irresistivelmente irônica…A verdade é que eu adoro ouvir estórias. Um dia eu desci com o propósito de ir ao banco, encontrei-a com a cachorrinha que se chama ficelle, tanto falou a Madame luxemburguesa que, quando cheguei ao banco as portas já estavam fechadas.
Mas vejam que a sua estória era bem mais interessante que a operação que eu devia fazer no banco. Disse ‘je suis une fille naturelle’ e explicou, desnecessariamente, o que significava: ela desconhecia o pai. Quando ela estava com uns quatorze anos a sua mãe casou-se com um homem jovem e bonito, “Le plus beau du village”, disse. A juventude e a beleza do rapaz obcecaram a tal ponto a mãe que ela passou a maltratar a filha por ciúmes. Vou fazer a estória mais curta para não perder o leitor, o caso é que os avós tiveram que vir resgatá-la do inferno. Entretanto, acrescentou a luxemburguesa, era tudo na cabeça da mãe porque o rapaz era um gentleman e nunca encostou um dedo nela. Vivia bem com os avós até que os nazistas invadiram luxemburgo (que era, como a Bélgica, país neutro, mas isso era apenas um detalhe para Hitler) e os vizinhos, vendo a em casa, disseram aos avós “É preciso arrumar um trabalho para essa menina porque os alemães estão levando todos os ociosos.” Assim, por força das circunstâncias, arrumaram-lhe um lugar no hospital e ela tornou-se enfermeira até poucos dias atrás quando se aposentou.
Ao lado do apartamento da luxemburguesa vive um chileno, e foi por causa dele que ele começou a falar-me da infância infeliz, da invasão alemã, da mãe ciumenta….Isto é, o chileno é odiado no prédio e mais ainda por quem vive no mesmo andar. Eu tentei fazer uma fraca defesa do chileno dizendo que talvez ela tivesse sido torturado por Pinochet e bla bla bla….Ela disse, muito firmemente, que isso não justifica as grosserias dele e narrou a própria desgraça com requinte de detalhes. Descreveu até os riachos de Luxemburgo mas tenho certeza de que ninguém está disposto a perder o encontro no banco e, tenho que confessar, ela narra muito, mas muito melhor que eu.

Leila Silva


Um comentário:

Anônimo disse...

Boa crônica, leve, direta. É uma característica de sua narrativa, a forma simples e direta. A força está na emoção que o texto transmite, tendemos a sentir simpatia, impaciência, indulgência, enfim: assumimos o papel do narrador e com ele nos identificamos.
Manoel Carlos