segunda-feira, 2 de agosto de 2004

Ser

Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno relapso e já não sou mais.

Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.

Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas e a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a dona do barraco vem nos encher o saco e nos dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.

Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?
Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar dizendo que prostituta é atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.

……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.

Leila Silva

PS: O O cenário não é a Bélgica mas, como ando sem tempo de rever os outros, decidi postar esse que deveria estar em um Cadernos de Londres.

2 comentários:

Allan Robert P. J. disse...

Nem precisava do PS. Está ótimo!
Vê se arranja mais tempo para escrever.
Ciao

Anônimo disse...

Achei que já havia lido este... Como sempre, muito bom.
Manoel Carlos