Ser
Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno relapso e já não sou mais.
Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.
Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas e a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a dona do barraco vem nos encher o saco e nos dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.
Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?
Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar dizendo que prostituta é atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.
……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.
Leila Silva
PS: O O cenário não é a Bélgica mas, como ando sem tempo de rever os outros, decidi postar esse que deveria estar em um Cadernos de Londres.
2 comentários:
Nem precisava do PS. Está ótimo!
Vê se arranja mais tempo para escrever.
Ciao
Achei que já havia lido este... Como sempre, muito bom.
Manoel Carlos
Postar um comentário