sábado, 30 de outubro de 2010

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

As palavras de Chico Buarque


“Vim reiterar meu apoio a essa mulher de fibra, que já passou por tudo, e não tem medo de nada”, disse Chico em evento pró-Dilma no RJ que reuniu artistas e intelectuais

Evento na segunda-feira 18 no Rio de Janeiro reuniu artistas e intelectuais em prol da candidatura da petista Dilma Rousseff a presidência da Repúlica. Na mesa principal, vestindo uma camiseta vermelha e sentado ao lado da candidata, estava o cantor e compositor Chico Buarque. Desvelando a pecha de tímido, Chico discursou de improviso. “Pensei que fosse ficar apenas como papagaio de pirata do [teólogo Leonardo] Boff”:

“Vim reiterar meu apoio a essa mulher de fibra, que já passou por tudo, e não tem medo de nada. Vai herdar o senso de justiça social, um marco do governo Lula, um governo que não corteja os poderosos de sempre, não despreza os sem-terra, os professores, os garis. Um governo que fala de igual para igual com todos, que não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai”.

Boff, um dos articuladores do encontro, fez uma referência a onda de panfletos anti-Dilma que circulam pela internet e pelas ruas. “Se com Lula a esperança venceu o medo, com Dilma a verdade vai vencer a mentira. O projeto que se articula com a privatização e com os negócios encurta a população brasileira e não podemos permitir que ele volte”.

A filósofa Marilena Chauí, uma das mais entusiasmadas no encontro, puxou um santinho do tucano José Serra com a mensagem “Jesus é a verdade e a justiça” e disparou: “É religiosamente obscena”.

Estavam presentes no evento o arquiteto Oscar Niemeyer, as cantoras Alcione e Beth Carvalho, os diretores José Celso Martinez e Ruy Guerra e os escritores Fernando Morais e Eric Nepomuceno.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Guerra suja na campanha eleitoral


Corre solta na internet uma guerra – e, como toda guerra, sem qualquer ética – de manipulação da informação, agora tendo como aliados partidos de oposição e os setores mais retrógrados das igrejas católica e evangélica, incluindo velhas e conhecidas organizações como o Opus Dei e a TFP

As campanhas eleitorais têm servido para revelar, de forma inequívoca, qual a ética empresarial e jornalística que predomina na grande mídia brasileira.

Os episódios recentes relacionados à demissão de conceituada articulista do Estado de S.Paulo, assim como a ação da Folha de S.Paulo, que obteve na Justiça liminar para retirada do ar do blog de humor crítico Falha de S.Paulo, são apenas mais duas evidências recentes de que esses jornalões adotam, empresarialmente e dentro de suas redações, práticas muito diferentes daquelas que alardeiam em público.

Como se sabe, o Estadão é o jornal que afirma diariamente estar sofrendo “censura” judicial, há vários meses.

Tratei do tema neste Observatório quando da demissão do jornalista Felipe Milanez, editor da revista National Geographic Brasil, publicada pela Editora Abril, por ter criticado, via Twitter, a revista Veja (ver “Hipocrisia Geral: Liberdade de expressão para quem?”).

Corre solta também, na internet, uma guerra – e, como toda guerra, sem qualquer ética – de manipulação da informação, agora tendo como aliados partidos de oposição e os setores mais retrógrados das igrejas católica e evangélica, incluindo velhas e conhecidas organizações como o Opus Dei e a TFP.

Ademais, uma série de panfletos anônimos sobre candidatos e partidos, de conteúdo mentiroso e manipulador, tem aparecido e circulado em diferentes pontos do país, aparentemente de forma articulada.

Estamos chegando ao “primeiro mundo”. Repetem-se aqui as estratégias políticas obscuras que já vem sendo utilizadas pelos radicais conservadores ligados – direta ou indiretamente – à extrema direita do Partido Republicano – o “Tea Party” – e também pela chamada “Christian Right”, nos Estados Unidos.

A bandeira da liberdade de expressão equacionada, sem mais, com a liberdade de imprensa, não passa de hipocrisia.

Começou com o PNDH3
A atual onda, que acabou por deslocar o eixo da agenda pública da campanha eleitoral e da propaganda política no rádio e na televisão para uma questão de foro íntimo e religioso, teve seu início na violenta reação ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), capitaneada pela grande mídia. Na época, escrevi:

“O curto período de menos de cinco meses compreendido entre 21 de dezembro de 2009 e 12 de maio de 2010 foi suficiente para que as forças políticas que, de fato, há décadas, exercem influência determinante sobre as decisões do Estado no Brasil, conseguissem que o governo recuasse em todos os pontos de seu interesse contidos na terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto n. 7.037/2009). Refiro-me, por óbvio aos militares, aos ruralistas, à Igreja Católica e, sobretudo, à grande mídia.” ["A grande mídia vence mais uma", 15/5/2010].

São essas forças políticas – com seus paradoxos e contradições – que agora se unem novamente para tentar influir no resultado das eleições presidenciais de 2010, valendo-se da “ética” de que “os fins justificam os meios”.

Lições
A essa altura, já podem ser observadas algumas lições sobre a mídia e suas responsabilidades no processo político de uma democracia representativa liberal como a nossa:

1. Não é apenas a grande mídia que tem o poder de pautar a agenda do debate público. A experiência atual demonstra que, em períodos eleitorais, essa agenda pode ser pautada “de fora” quando há convergência de interesses entre forças políticas dominantes. Elas se utilizam de seus próprios recursos de comunicação (incluindo redes de rádio e televisão), redes sociais (p. ex. Twitter) e correntes de e-mail na internet. A grande mídia, por óbvio, adere e abraça a nova agenda por ser de seu interesse.

2. Fica cada vez mais clara a necessidade do cumprimento do “princípio da complementaridade” entre os sistemas de radiodifusão (artigo 223 da Constituição). Seria extremamente salutar para a democracia brasileira que o sistema público de mídia se consolidasse e funcionasse, de fato, como uma alternativa complementar ao sistema privado.

3. Independente de qual dos candidatos vença o segundo turno das eleições presidenciais, a regulação do setor de comunicações será inescapável. Não dá mais para fingir que o Brasil é a única democracia do planeta onde os grupos de mídia devem prosseguir sem a existência de um marco regulatório.

4. O artigo 19 da Constituição reza:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na formada lei, a colaboração de interesse público.

Apesar de ser, portanto, claro o caráter laico do Estado brasileiro, na vida real estamos longe, muito longe, disso.

5. Estamos também ainda longe, muito longe, do ideal teórico da democracia representativa liberal onde a mídia plural deveria ser a mediadora equilibrada do debate público, representando a diversidade de opiniões existentes no “mercado livre de idéias”. Doce ilusão.

Artigo originalmente publicado no Observatório da Imprensa

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Hildegard Angel expõe preconceito da elite contra Lula

Da Carta Capital via Escrevinhador

Por Cynara Menezes

RADICAL CHIC

Enquanto seu irmão Stuart era preso e morto pela ditadura, em 1971, a jovem Hildegard Angel iniciava trajetória oposta, no colunismo social do jornal O Globo, onde trabalharia, entre idas e vindas, por quase 40 anos. Em 1976, quando a mãe dos dois, a estilista Zuzu, foi assassinada pelo regime em um “acidente” de carro, Hildegard já era uma jornalista conhecida e atriz de tevê. Não deixa de ser interessante que, aos 60, recém-saída do extinto Jornal do Brasil (agora só on-line), assuma uma postura de franco-atiradora.

Suas armas são um blog e o twitter. Seus alvos: a mídia e a preferência pelo candidato José Serra, do PSDB. No mês passado, ela declarou voto em Dilma Rousseff, do PT. Na entrevista concedida a CartaCapital em sua cobertura de frente para o mar em Copacabana, Hildegard Angel, criadora do termo “emergente” para definir os novos ricos cariocas, diz que Lula sofre preconceito por ser um deles, na política. “Já o Serra é o valoroso self-made-man”, ironiza.

CC: Por que a senhora decidiu apoiar Dilma Rousseff? H: Ela estava sendo tão massacrada que achei ser o momento de me posicionar. Era um bombardeio de e-mails, de sobrenomes coroadíssimos, atacando a Dilma. Começaram denegrindo pelo físico, que ela era feia, horrorosa, megera, medonha. Aí ela ficou bonita e não puderam mais falar. Então começaram a atacar a parte moral, que ela é assassina, terrorista, ladra. Isso é um reflexo da impunidade. Enquanto não colocarmos nos devidos lugares os que foram responsáveis pelas atrocidades da ditadura, eles vão se sentir no direito de forjar uma realidade inexistente, de denegrir nossos mártires, nossos heróis.

CC: Antes desta eleição, a senhora já tinha se posicionado politicamente? H: Não. Em nível nacional é a primeira vez. E acho que meu depoimento e o almoço que a Lily Marinho (viúva de Roberto Marinho) promoveu romperam o círculo “demonizante” erguido em torno da Dilma. Ali se fez uma fissura. A classe alta pensante e os ricos mais liberais se permitiram uma abertura.

CC: Lily Marinho apoia Dilma? H: A Lily passou a apoiar Dilma depois que a conheceu. Quando ela fez o almoço pra Dilma, estava agindo como a mulher do Roberto Marinho, que está acima do bem e do mal e que pode se dar ao luxo de receber quem bem entende. Mas a Dilma conquistou a Lily. Antes do almoço, podia até haver a ideia de receber também os outros candidatos. Depois, não havia mais.

CC: Houve reação dos filhos de Roberto Marinho pela madrasta ter recebido a candidata do PT? H: A Lily tem uma relação tão harmoniosa, tão respeitosa com eles, que acho que jamais teriam qualquer tipo de reação. O jornal e toda a organização têm sido muito duros com a Dilma. A única matéria positiva sobre ela, até hoje em O Globo, da primeira até a última palavra, foi a do almoço com a Lily.

CC: Há quatro anos o ex-governador de São Paulo Claudio Lembo criticou a “elite branca”. A senhora acha que ele falava só da paulistana ou da carioca também? H: Da elite brasileira como um todo. É uma elite preconceituosa, que tem seus valores, seus princípios, e acha muito difícil abrir mão de suas convicções.

CC: Que tipo de rico tem preconceito com o Lula? H: O rico do passado, da herança, do aluguel, muito apegado a tradições, a sobrenome. É, na maioria, uma elite não produtiva. Porque a elite produtiva, o homem que emprega, que gera progresso, desenvolvimento, não deixa de aplaudir o Lula. Mas, às vezes, a mulher deste homem não aplaude… Diplomatas aposentados também têm preconceito com Lula. O Itamaraty sempre foi o filé mignon do serviço público brasileiro, pela cultura, pela erudição, pelo savoir faire. E a política externa atual vai na contramão disso tudo. Esse é um segmento social que rejeita o Lula, o dos punhos de renda.

CC: Nos círculos que frequenta, ainda há gente que faz piada com a origem humilde de Lula? H: O vaivém dos e-mails de gente da classe A contra o Lula é de uma variedade enorme… Por exemplo, as festas caipiras do Lula incomodaram muito. Já a Zuzu Angel sempre viu uma beleza extraordinária na caipirice, tanto que foi a primeira a usar as rendas do Norte, a misturar com organza, a usar as chitas, hoje tão na moda. Minha mãe tinha uma frase: a moda brasileira só será internacional se for legítima. Por isso foi a primeira a ter penetração no exterior. De certa forma, o Lula, com as festas caipiras dele, fez o que a Zuzu fez em 1960 com a moda caipira dela.

CC: Serra também tem origem humilde. Por que não existe esse preconceito contra ele?H: Porque o perfil do Lula se encaixa mais no do emergente. O do Serra é o do valoroso self-made man… O Serra, para ser o homem que é, teve de dominar os códigos da elite, pelo estudo, pela convivência com pessoas intelectualmente superiores. Já o Lula foi abrindo caminho na base da cotovelada. E, de certa maneira, se manteve fiel à sua raça. Não se transformou com a ascensão, não se desligou, guardou seu ranço de pobreza, a memória do sofrimento. Isso o tornou mais sensível.

CC: E por outro lado o faz ser malvisto? H: Sim, porque nunca será um igual, nem faz questão. A dona Marisa Letícia nunca abriu seus salões. Durante o governo FHC, fui inúmeras vezes convidada para recepções no Itamaraty e, em governos anteriores, até no Palácio da Alvorada. No governo Lula, só fui convidada uma vez, para o Itamaraty. Black-tie nunca existiu. Isso cria uma limitação de trânsito social. Não há uma interação para esta sociedade se inserir dentro de uma linguagem que não seja de gabinete junto à família Lula.

CC: Ainda tem muito preconceito de classe no Brasil? H: Cada vez menos, mas tem. O que Lula sofre é preconceito de classe, mas está sendo superado por ele mesmo. Essa possível vitória da Dilma mostra que não é só o povão, não só aqueles que melhoraram de situação. Tem muito rico pensando diferente, saindo do casulo, desse gueto de pensamento.

CC: O interessante é que o dinheiro também tem de ser bem-nascido. De padaria, de marmita, não é dinheiro “bom”? H: O dinheiro do comércio sempre foi visto no Brasil como um dinheiro sem base cultural, de origem ruim. Já o dinheiro da indústria, da área financeira, era “digno”. Agora, com a falta generalizada de dinheiro no meio dos que eram muito ricos, estas pessoas com dinheiro de origem menos nobre conseguiram uma posição de respeitabilidade no ambiente social.

CC: Os emergentes são mais respeitados? H: São mais aceitos, embora o verdadeiro emergente não esteja mais preocupado com isso. O verdadeiro emergente não tem aquelas veleidades do nouveau riche de antigamente. O nouveau riche de ontem queria entrar para o soçaite, queria que seus filhos estudassem com os filhos do soçaite, tinham aquela visão encantada de alta sociedade. O emergente de hoje tem mais noção do seu poder, não é tão submisso. Com o empobrecimento do rico tradicional, o rico do dinheiro novo se achou numa posição de não precisar fazer tanto a corte a essas pessoas.

CC: O dinheiro de Eike Batista, por exemplo, é “nobre”? H: Culturalmente falando, sim. Ele é filho de Eliezer Batista, que tinha grande status no País há muitas décadas. O que acontece é que o Eike sabe muito bem o que quer. Gosta de esporte, de mulher bonita, dos filhos e do trabalho dele. Sua vida é um retrato disso. Tem um carro espetacular de corrida na sala, tem casa decorada com troféus das suas lanchas. Ele poderia ter um Picasso, mas não é aquele rico tradicional. Nós temos no País essa classe da riqueza envergonhada, que não tem muito como explicar o seu dinheiro, da riqueza escondida, que não pode ser fotografada… E o Eike, como tudo dele, acredito, seja declarado lá no imposto, pode expor seu dinheiro. Ele é o rico da riqueza assumida.

CC: O jornalista Mauricio Stycer estudou a coluna de Cesar Giobbi no Estadão em 2002, quando Lula se candidatou pela primeira vez, e concluiu que o colunista fez campanha disfarçada para Serra. Isso é comum? H: Ah, a Miriam Leitão também faz… É comum o colunista ter afinidade com o veículo e ter uma linha de raciocínio que vai ao encontro da dele e ao meio em que convive. O Giobbi é uma pessoa estimadíssima na alta sociedade paulistana, não é visto nem como jornalista, é visto como “da turma”. A Mônica Bergamo (Folha de São Paulo) não é vista como uma “da turma”. O Giobbi é um do time, então raciocina de acordo com seu time.

CC: Dos colunistas sociais clássicos, como Ibrahim Sued, tinha algum que era mais de esquerda? H: O Zózimo (Barroso do Amaral) era visto à esquerda, mas era muito discreto, eu nunca o vi se posicionar ostensivamente na contramão do seu grupo social. Isso não existe. Havia na época uma coisa charmosa, atraente, um esquerdismo light, fazia parte do put together da elegância.

CC: Manifestar-se politicamente agora a recoloca mais no caminho do Stuart e da Zuzu? H: Sinto-me um pouco refém da coragem da minha família, é como se tivesse retomado meu curso. Como se cumprisse uma trajetória que estava ali me esperando, neste momento que as pessoas se acomodaram, que estão submetidas a seus empregos, todas colocadas na grande imprensa, com uma posição monocórdia, um pensamento único.

CC: Pretende se tornar uma guerrilheira on-line? H: Eu seria muito pretensiosa e desrespeitosa se de alguma maneira usasse essa qualificação de guerrilheira. Guerrilheiro foi meu irmão. Eu não fui. Estou tirando o atraso, só isso.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Dois pesos…

Por Maria Rita Khel*

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

*Matéria originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida do site O Escrevinhador