imagem: La petite étagère, Christian Choisy
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Viagem
Eu olhava, da janela, a paisagem, quadros se faziam e se desfaziam. Um eterno café com pão, há quantas horas estava já eu dentro deste trem? Sebastião dormia, conseguiu dormir. Na minha frente, um moleque branco, de olhos mansos. Tão raquítico e coitado que lhe ofereci um pão de queijo, um dos pães de queijo que a mãe de Sebastião preparara para a nossa viagem. O menino olhou para a cara da mãe esperando o sinal de autorização, balançou a cabeça que sim, obrigado. Um cachorro corria com o trem, língua pra fora, passou por nosso vagão sorrindo. Sorrindo, um cão? A viagem era demorada e cansativa, por que decidimos fazê-la de trem se aqui ninguém mais viaja assim? Idéia de Sebastião. Queria experimentar e agora dormia. Experimentar antes que se acabe definitivamente, disse e contente entrou no trem, muito cedo, eu e ele com os pães de queijo, as mochilas e os olhos cansados, mal dormidos. Tudo era estranho olhado deste trem, o lá de fora e o aqui de dentro, as pessoas e as coisas. Um jeito de passado, Sebastião dormia e perdia. Numa estação paramos, entraram pessoas, ciganos, muitos ciganos barulhentos com crianças, mulheres de muitas saias, dentes de ouro. Um dos ciganos, cara de poucos amigos, carregava um gongo, o gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. Blum, blum. Sebastião acordou assustado, disse quê isso? Nem respondi, o cigano olhou para ele desafiador. Quer pão de queijo, Tião? Perguntei para mudar a rota dos pensamentos. Sebastião não quis. Quer outro? Perguntei ao menino. Não queria, tampouco, o cigano e o seu gongo mudara todo o ritmo. Peguei uma de minhas revistas e folheei, folheei sem vontade, olhei de novo para fora e nada tinha mudado, só o cachorro tinha ficado para trás. Vivia em algum daqueles sítios? Por certo.
No trem, pouca coisa acontecia além do barulho dos ciganos, suas risadas, um ajeitar de lenços na cabeça, só o do gongo continuava quieto, respondia a uma ou outro pergunta dos outros. Seria o chefe? Cigano tem chefe? Sebastião deu uma volta pelo trem, esticou-se, voltou a sentar e logo dormia de novo. Eu na contemplação. Mata, casinhas, cachorros, riachos, montes, crianças abanando as mãozinhas.....mais uma parada. O menino e a mãe ficavam ali, timidamente me disseram adeus. Ele a sorrir, pesaroso. Os ciganos se juntaram no fundo do vagão onde agora havia lugar para todos eles.
Tantas horas já. Tantas horas ainda. Era um viajar monótono, era um pensar. Viajar. Pensar. Revirei minha mochila em busca do livro, Noites do sertão, combinava. Mas eu ia conseguir ler nesse ‘virgem Maria que foi isso maquinista?’ E o trem parou mais uma vez, os ciganos desceram fazendo uma algazarra, como de propósito, o cigano do gongo fez novo barulho. Só eu e Sebastião continuávamos nessa viagem. Isso me deu uma estranha sensação, um medo. Se assim fosse, se não parássemos nunca de passar por esses lugares, nada mudasse, tudo se repetisse ad infinitum, se isso fosse uma condenação? Acordei Sebastião e ele me garantiu que em quarenta minutos, não mais. Jura? Eu não fico mais neste trem, não mais que quarenta minutos. Que bobagem, disse Sebastião e voltou a dormir. Sentou-se, na minha frente, um moleque branco, de olhos mansos. Tão raquítico e coitado que lhe ofereci um pão de queijo. Ele olhou para a mãe.
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Revista Maria Joaquina
Um comentário:
que delícia de conto..vc escreve de uma forma leve, bom de ler!
bjs
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