quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Airama

[Não faz parte, necessariamente, dos cadernos da Bélgica. Por falta de tempo de contar os casos daqui, saio da minha proposta e deixo esse conto curto.]

Airama

“ A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra”
Matsuo Bashô


Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho…chaninho…chaninho…sem atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.

Maria não me quer mais. Diz coisas descabidas, cospe no passado, rasga as fotos.
Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.
Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta por cento daquilo.
Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez as malas e coloriu o meu armário.
Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´
Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.

O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.

Um dia Maria acordou e anunciou que o perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n. 5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas Maria não queria saber de nada.
Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali….`vai mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira carregada.

Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.

O cão ainda está aqui, lavei-o, alimentei-o, ele engordou…Olha para a televisão com a boca aberta e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação natural, dá conselhos de beleza….Quanto mais revela, mais esconde. Maria, que era bonita como uma laranjeira. ´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.
Leila Silva

Um comentário:

Allan Robert P. J. disse...

Gostei!
Existiu uma casta de escritores italianos que seguiam uma linha um pouco cruel, coisas do tipo "a dura realidade da vida". Essa vertente literária recebeu o nome de veríssiomos. O maior de todos se chamava Giovanni Verga. Se tiver a oportunidade, leia-o.
Ciao.