Fonte: Portal Literal
Tive uma empregada que possuía oito irmãos e quatro irmãs, todos, por sua vez, com muitos filhos. Ela – vamos chamá-la de Sonia – já tinha três filhos, e o pai deles os havia abandonado. O mesmo ocorrera com os pais dos filhos de suas irmãs. Uma história comum, quase um chavão, que nem merece ser contada.
Sonia cuidava sozinha das crianças. Mas teve a sorte de trabalhar, durante algum tempo, na casa de uma médica da prefeitura, que, preocupada com a situação de Sonia, prevendo que ela certamente continuaria a ter filhos que seriam abandonados pelos pais, propôs a ela que fizesse a ligadura das trompas no hospital onde trabalhava. A médica, porém, obrigou Sonia a prometer que não diria a ninguém que sofrera aquele tipo de intervenção no hospital de sua patroa, pois esta poderia ser demitida, já que era terminantemente proibido fazer esse tipo de intervenção em hospitais públicos. Para todos os efeitos, a médica estaria cuidando de uma infecção urinária de Sonia.
É muito raro uma pessoa pobre ter tanta sorte. A filha de Sonia, de treze anos, não teve. Ficou grávida e, sem dinheiro para fazer um aborto numa clínica com médicos obstetras competentes, entregou-se a um desses carniceiros, que, apressado (eles têm muitas clientes esperando na fila), usando processos sem a menor higiene, deixou a filha de Sonia gravemente enferma. Ela foi internada num hospital público com infecção generalizada, falecendo após um mês. Isso não foi notícia de jornal, é algo muito banal para sair nas folhas. Como também os jornais não deram destaque ao fato de que em 2007 o Ministério da Saúde gastou dezenas e dezenas de milhões de reais com a internação de mulheres que abortaram clandestinamente sem recursos, como a filha da Sonia. Não existe, todavia, uma estatística – e se existe, é secreta – sobre o número de mulheres hospitalizadas e mortas em conseqüência de um aborto clandestino.
Isso acontece cada vez mais. Aumenta o número de mulheres (pobres, já que as ricas podem pagar por um aborto seguro) que morrem ou ficam com seqüelas doentias para o resto da vida devido a esse tipo de aborto ilegal. A mulher pobre que quer abortar neste país corre severos riscos de vida. A criminalização do aborto é resultante do fanatismo mais estúpido. A criminalização, além de iníqua (mais uma das injustiças, das violências e das opressões que a mulher tem enfrentado historicamente) é também anti-econômica. A criminalização do aborto é algo tão cretino que hoje existe apenas em países atrasados, como o nosso, a maioria na America Latina.
Mesmo assim, calcula-se que 20 milhões de abortos são realizados por ano nesses países onde esta prática é restringida ou proibida por lei. E milhões dessas mulheres sofrem danos irreparáveis para sua saúde ao realizar abortos praticados em condições extremamente precárias. O Código Penal brasileiro (e afirmo isso como ex-advogado criminalista que fui, durante algum tempo) está cheio de artigos ultrapassados, todavia o mais perverso de todos é esse que submete à pena criminal uma mulher que pratica o aborto.
O economista americano Steven Levitt fez um estudo, baseado em estatísticas e pesquisas de várias naturezas, no qual comprovou que com a descriminalização do aborto no Estados Unidos o índice de criminalidade em geral, naquele país, caiu drasticamente. As razões são óbvias. Essa conclusão não foi até hoje refutada.
A mulher carente, que se sente incapaz de ter um filho e criá-lo, tem que ter o direito de decidir se quer ou não fazer um aborto. Que deveria ser realizado em hospital público, com todos os recursos médicos.
Sei que não é fácil conseguir isso num país onde alegam que a pílula do dia seguinte é um atentado à vida – uma grosseira mentira, pois essa pílula impede a fecundação e nenhum feto "morre", o único prejudicado é o espermatozóide mais veloz, que perdeu sua chance de se aninhar num óvulo.
Este país está ficando cada vez mais triste. E os três dias de Carnaval são um devaneio extravagante e idiota, como na peça de Shakespeare – cheio de som e fúria, significando Nada.
Sonia cuidava sozinha das crianças. Mas teve a sorte de trabalhar, durante algum tempo, na casa de uma médica da prefeitura, que, preocupada com a situação de Sonia, prevendo que ela certamente continuaria a ter filhos que seriam abandonados pelos pais, propôs a ela que fizesse a ligadura das trompas no hospital onde trabalhava. A médica, porém, obrigou Sonia a prometer que não diria a ninguém que sofrera aquele tipo de intervenção no hospital de sua patroa, pois esta poderia ser demitida, já que era terminantemente proibido fazer esse tipo de intervenção em hospitais públicos. Para todos os efeitos, a médica estaria cuidando de uma infecção urinária de Sonia.
É muito raro uma pessoa pobre ter tanta sorte. A filha de Sonia, de treze anos, não teve. Ficou grávida e, sem dinheiro para fazer um aborto numa clínica com médicos obstetras competentes, entregou-se a um desses carniceiros, que, apressado (eles têm muitas clientes esperando na fila), usando processos sem a menor higiene, deixou a filha de Sonia gravemente enferma. Ela foi internada num hospital público com infecção generalizada, falecendo após um mês. Isso não foi notícia de jornal, é algo muito banal para sair nas folhas. Como também os jornais não deram destaque ao fato de que em 2007 o Ministério da Saúde gastou dezenas e dezenas de milhões de reais com a internação de mulheres que abortaram clandestinamente sem recursos, como a filha da Sonia. Não existe, todavia, uma estatística – e se existe, é secreta – sobre o número de mulheres hospitalizadas e mortas em conseqüência de um aborto clandestino.
Isso acontece cada vez mais. Aumenta o número de mulheres (pobres, já que as ricas podem pagar por um aborto seguro) que morrem ou ficam com seqüelas doentias para o resto da vida devido a esse tipo de aborto ilegal. A mulher pobre que quer abortar neste país corre severos riscos de vida. A criminalização do aborto é resultante do fanatismo mais estúpido. A criminalização, além de iníqua (mais uma das injustiças, das violências e das opressões que a mulher tem enfrentado historicamente) é também anti-econômica. A criminalização do aborto é algo tão cretino que hoje existe apenas em países atrasados, como o nosso, a maioria na America Latina.
Mesmo assim, calcula-se que 20 milhões de abortos são realizados por ano nesses países onde esta prática é restringida ou proibida por lei. E milhões dessas mulheres sofrem danos irreparáveis para sua saúde ao realizar abortos praticados em condições extremamente precárias. O Código Penal brasileiro (e afirmo isso como ex-advogado criminalista que fui, durante algum tempo) está cheio de artigos ultrapassados, todavia o mais perverso de todos é esse que submete à pena criminal uma mulher que pratica o aborto.
O economista americano Steven Levitt fez um estudo, baseado em estatísticas e pesquisas de várias naturezas, no qual comprovou que com a descriminalização do aborto no Estados Unidos o índice de criminalidade em geral, naquele país, caiu drasticamente. As razões são óbvias. Essa conclusão não foi até hoje refutada.
A mulher carente, que se sente incapaz de ter um filho e criá-lo, tem que ter o direito de decidir se quer ou não fazer um aborto. Que deveria ser realizado em hospital público, com todos os recursos médicos.
Sei que não é fácil conseguir isso num país onde alegam que a pílula do dia seguinte é um atentado à vida – uma grosseira mentira, pois essa pílula impede a fecundação e nenhum feto "morre", o único prejudicado é o espermatozóide mais veloz, que perdeu sua chance de se aninhar num óvulo.
Este país está ficando cada vez mais triste. E os três dias de Carnaval são um devaneio extravagante e idiota, como na peça de Shakespeare – cheio de som e fúria, significando Nada.
3 comentários:
Querida amiga, este é um assunto complexo que envolve religiosidade, ética, saúde pública, educação...
No caso dos casais, na condição de homem, acho que a última palavra sobre o assunto deve ser da mulher, seja qual for a decisão, ela deve contar com incondicional apoio e solidariedade do homem.
A gravidez precoce é um problema muito sério. Outro é o número de filhos dos pobres, mas não pode ser feito controle de natalidade tendo em vista apenas o aspecto sócio-econômico. Já contei o "exercício" que Sílvia, minha mulher, fazia quando dava aulas de aconselhamento genético para turmas de Psicologia. Ela falava de casos assemelhados e os alunos sempre tentavam uma solução que não o aborto para casais que não fossem pobres e de aborto para os pobres. Ao fim ela descrevia um caso hipotético, dos pais sifilíticos, alcóolatras, pobres, com quatro filhos surdos e a mulher grávida. Todos alunos aconselhavam o aborto e ela dizia: - parabéns, vocês acabaram de impedir o nascimento de Beetoven.
Manoel Carlos
Eu sempre me impressionei com os pequenos notícias nos jornais daqui. Sempre quis, mas nunca escrevi sobre isto. Pequenos notícias; por exemplo, quando um menino de cinco anos, andando de bicicleta, tromba com uma barreira porque não conseguiu brecar. Acontecimentos como este do qual fala o Rubem Fonseca, aqui, mereceria um destaque especial. Como recebe destaque especial e causa arrepios, quando uma criança morre de inanição em uma família com outra criança saudável e dois cachorros gordos... E nos últimos anos ocorreram alguns casos semelhantes. Assuntos polêmicos e de difícil solução, por se tratar, como bem lembra o Manoel Carlos, de assunto bem complexo.
1. Todo mundo sabe, até menina carente, que aquilo naquilo faz bebê, vamos nos transformar todos em inconsequentes?
2. Quem pode dizer com 100% de certeza quando começa a vida? o Rubem Fonseca? Com que autoridade?
3. O próprio Levitt reconheceu que usar o aborto como meio de prevenção à criminalidade seria uma estupidez, basta ler o resto do capítulo...
4. Não é melhor dar educação para todos do que cirurgias de aborto para todos?
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