domingo, 13 de agosto de 2006

SAUDADE


Carlos Pessoa Rosa

Que importância tem mais esta viagem se na vida fui um nômade? Acostumei-me com as geografias que me visitaram, ignorei os atores, passantes anônimos que fizeram parte de meus instantes. Diante dos caminhos oferecidos pela existência, nunca passei de um viajante passivo. Mantive-me o mais distante possível das sutilezas e das armadilhas da vida. Sem prazer, mas também sem dor. Esse foi meu lema.
De onde me encontro, na boca ruminante das desoras, ao som vacante das corujas, quando Arlete, a mulher encontrada na rua – nem sei se é esse seu verdadeiro nome –, dorme, pouco se vê de trilhos, trilhas, estradas, aviões, trens, ou navios; de opções. A liberdade caminha sobre trilhos, amarrada em regras inflexíveis e pontuais, a individualidade, uma ilusão. No quarto, rosto de pedra, expressão de solidez absoluta, absorto, junto a obsoleto sexo, escancarado, semi-aberto, úmido, diviso a pausa. Descaso comigo essa relação com uma profissional? Não! Dá menos trabalho que uma punheta. Só isso.
Dissimuladas, assim foram todas as aberturas ao longo da estrada. A criança de passos duros, olhos engessados, estranheza de estrangeiro, seguia na calçada-rolante: de casa à escola, da escola em casa. Igual ao trem de ferro que atravessava a vila, a íris, barulhento na memória, aventando a pele. Aprendeu a agir como o voyeur que se excita independentemente de qualquer atividade própria. O lugar predileto sempre foi o calçamento, recostado em algum muro, de onde assistia ao que ocorria ao seu redor. Foi o modo como gastei meu tempo infantil, torcendo no mais das vezes por algum pião ou bolinha de vidro alheio a mim. Nunca fui o vencedor. Como sobreviver exigia ignorar problemas menores, para a família eu não passava de uma criança estranha e orgulhosa, algo mais palpável que alguma doença psiquiátrica ou depressão. Sem criar problemas, acomodaram minha existência na deles. Portanto, do infante, além da repetição e do distanciamento, não deixo história a ser contada.
O adolescente assumiu de vez o papel de voyeur. Concretamente. Perdeu a noção das mulheres que rodearam seu imaginário para lhe oferecer prazer. No início, em casa. Depois, nas salas de filme pornô. Assim conheceu o comércio de sexo. Logo se acostumaram com o sujeito de terno e gravata, que aparecia às sextas-feiras, trepava, pagava e desaparecia. Assim foi até o primeiro casamento. Pensava que uma vida em família facilitaria o viver. Ilusão. Foram três casamentos. A primeira, uma professora do interior, tímida e sem iniciativa. Tivemos dois filhos que procurei não conhecer além do que o olhar permitia. Voltou para a casa dos pais. A segunda, uma aluna evangélica. Falhei na escolha. Exigia demais de meus testículos. Com ela não tive filhos. Fugiu com um assistente meu. Vivem na praia. A última morreu de câncer de mama. Tudo isso mesclado a uma profissão brilhante, titulado doutor pela melhor universidade pública do país, em História. Sarcástica escolha, com certeza.
A verdade é que a vida nunca me convenceu. Não experimentei AIDS nem sífilis. A maconha, tão em voga na época, não me ofereceria mais que um arranhão na anestesia original. Daí não tentar. Muito menos ácido ou cocaína. Detestava as pessoas que se utilizavam desses artefatos para se sentirem vivas. Nunca procurei as mulheres que me abandonaram, nem fui ao velório da cancerosa. Não aprecio touradas ou despedidas. Passei grande parte da vida lendo inutilidades que a profissão exigia. Procurei dar um sentido a tudo que me cercava, na história. Fui um crítico mordaz de qualquer tipo de ficção ou poesia, uma forma menor de se falar do mundo.
Agora... o convite. Sem marcas d’água, selos, envelopes ou cartas. Diante de sutileza estrelar e lua-cheia. Assim sempre quis, como observador os olhos infinitos da existência. Lúcido, não deixo testamento, registro fotográfico ou testemunhas – além da Arlete. E ela dorme, o sono desalinhavado das madalenas. Mergulho no que me anseia porque é de minha vontade retornar de onde vim. Lá não há sombras de palmeiras, sequer, pardais. Mas, em cismar, sozinho, à noite, mais prazer encontro eu lá...
Da Antologia Saboreando Palavras.
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RoseLivros: O encontro de Monteiro Lobato com Friedrich Nietzsche, por Aluizio Alves Filho.

3 comentários:

Allan Robert P. J. disse...

Não sei se gostei mais da crônica ou da foto.

Anônimo disse...

Gostei de tudo!!!

Anônimo disse...

Tirste, como toda história de quem prefere se manter à margem da vida, mas belo.