[Obs:História baseada no conto ‘La Fresque’ retirado do livro “Chroniques de l’étrange” de Pu Songling (1640 – 1715), autor chinês que já foi traduzido para todas as línguas latinas exceto o português.]
O quadro
Virgílio, originário de uma cidade do interior, encontrava-se na capital em companhia de seu amigo Pietro. Um dia caminhavam os dois sem destino certo por ruas e travessas quando avistaram um pequeno museu. O lugar estaria completamente deserto não fosse a presença de um velho empregado que cochilava no momento em que eles entraram. Mal os viu, o homem compôs respeitosamente as roupas e, cumprimentando os dois visitantes, ofereceu-se para lhes mostrar o que considerava seu pequeno refúgio. A sala principal abrigava máscaras e estátuas de personalidades ligadas à literatura, as paredes laterais eram cobertas por quadros pintados com tal delicadeza que se podia tomar por verdadeiras as figuras humanas ali representadas. Em um destes quadros via-se Ariadne sorridente, a palma da mão levantada, rodeada de outras mulheres de beleza quase comparável à dela. Sua figura, porém, se destacava e comoveu o coração de Virgílio. O olhar de Ariadne parecia um convite. Tanto concentrou-se na contemplação do quadro que perdeu o controle de si, seus pensamentos tornaram-se tão abstratos que entrou numa espécie de transe, sentiu o corpo tomar uma nova consistência, como se flutuasse num estranho nevoeiro - Subitamente estava dentro do quadro.Assustado, Virgílio compreendeu que se encontrava em outro mundo, ainda atordoado sentiu que o puxavam furtivamente pela manga, virou-se: Ali estava Ariadne a lhe sorrir. Ela afastou-se repentinamente e ele a seguiu de perto pelas galerias sinuosas até a porta de um quarto, uma vez ali, ele hesitou, não ousava entrar. A moça voltou-se e acenou de forma tão convidativa que Virgílio não pode resistir. Percebendo que não havia ninguém no quarto tomou-a imediatamente nos braços sem que ela oferecesse resistência. Horas mais tarde, satisfeita , ela se levantou, fechou as cortinas e, depois de avisar que ele não deveria emitir sequer um ruído, saiu prometendo que voltaria quando a noite caísse. E assim foi, voltou nessa noite, na noite seguinte e outras até que numa dessas vezes ouviu-se lá fora, no meio de vozes exaltadas, passos fortes juntamente com um tilintar de correntes. Ariadne levantou-se apavorada e espreitou pela janela: era um dos guardas do palácio. À sua volta se encontravam todas as outras moças. “Onde está Ariadne?", perguntou o homem. "Estava indisposta, está descansando", respondeu uma em nome de todas tentando acobertar a moça que elas tanto amavam e a quem tanto apreciavam escutar. "Se alguma de vós estiver escondendo algo importante será pior para todas. Não criem problemas dos quais ninguém vos poderá defender". O oficial, com o seu olhar de águia, parecia prestes a dar busca no esconderijo. Ariadne só teve tempo de dizer: "Rápido, esconde-te debaixo da cama". Quanto a ela, abriu uma porta secreta na parede e desapareceu num segundo. Virgílio mal se atrevia a respirar. Lá fora, o barulho das vozes ia esmorecendo. Apesar do medo e do desconforto não tinha outro remédio senão esperar, muito quieto, pelo regresso da jovem pois, tão toldado se encontrava seu espírito, que já não sabia de onde tinha vindo...
Ao aperceber-se do súbito desaparecimento de seu amigo, Pietro, perplexo, perguntou ao velho o que se passara. "Foi ouvir as histórias de Ariadne", respondeu com um sorriso irônico nos lábios. "Onde?" "Não foi longe", atalhou o outro dirigindo-se ao quadro. Chegando-se à pintura bateu com um dedo e perguntou: "Por que demoras tanto?" Imediatamente surgiu no quadro a imagem de Virgílio, a face descomposta pelas emoções, a cabeça ligeiramente inclinada como se estivesse a ouvir alguma coisa. "Há muito tempo teu companheiro te espera”, prosseguiu o homem. Nesse momento ele caíu do quadro e ficou prostrado no chão, os olhos esbugalhados e as pernas a tremer. Assustadíssimo, Pietro perguntou-lhe o que acontecera. O amigo não sabia o que responder; na verdade, estava debaixo da cama quando ouvira um enorme fragor, como se mil homens tocassem a um só tempo um tambor gigantesco. Apavorado, saíra a correr da câmara.
Os dois amigos voltaram-se para o quadro; a jovem continuava ali diante das outras, mas sua mão, agora, segurava o véu sobre o rosto. Surpreso, Virgílio voltou-se para o velho e perguntou-lhe a razão daquela mudança. "A ilusão nasce do espírito humano. Que outra explicação poderia lhes oferecer esse humilde servidor?"
Virgílio sentiu-se extremamente abatido, Pietro estava confuso. Ambos se levantaram e desceram as escadas que conduziam à saída.
Imagem:
Ariadne
John Williams
John Williams
6 comentários:
Donde se conclui que é muito perigoso visitar museus. Prinicpalmente se, ao invés de uma bela jovem, na tela estiverem à espreita medusas, cavaleiros de lança em riste ou mares tempestuosos.
Estou tendo dificuldade de por comentário aqui, Leila. Pus no post anterior, dos quadrinhos - tentei várias vezes - achei que tinho conseguido mas vejo que não está lá. Vamos ver este, como vai ser.
Se funcionar, escrevo outro.
Interessante composição, Leila! Histórias chinesas do séc XVII, uma escritora brasileira na Bélgica, no séc XXI, Ariadne conduzindo Virgílio nas esferas do além, como Virgílio conduziu Dante; os fios se entrelaçam, ligando pessoas e mitos de todas as eras, e você, talvez, não tenha feito isso de maneira intencional. Foi?
Bjs
Que bom descobrir seu blog, Leila. Gostei muito daqui. Um abraço amigo.
Se foi dada ao ser humano a faculdade da ilusão, por que não usufruí-la? A vida é real demais para ser encarada como normal.
ótimo!
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