[Um linda crônica de Regina Igel]
Era alto, magro, macilento e cego. Vendia vassouras pelas ruas do bairro, acompanhado de seu guia, um menino caolho, mal nutrido e baixinho. Uma dupla pouco atraente esteticamente. Mas o quê fazer. A sina desses dois era andar juntos, "pela estrada da vida", como um inspirado professor do meu ginásio revelou no seu discurso de formatura. Eles chegavam na rua onde eu morava como cachorros humilhados, daqueles que baixam as orelhas, o focinho e o rabo. O rosto do homem cego parecia varrer o chão em que pisava, oscilando da direita para a esquerda e volta, enquanto o menino, um de seus ombros agarrado pela súbita manopla do seu senhor, fazia o que podia para avançar de casa em casa. Batia palmas para chamar a atenção dos lá de dentro ou, encontrando uma campainha, pousava seu polegar de unha escura até que uma furibunda dona-de-casa ou uma empregada suada aparecesse na portinhola gradeada da porta principal.
-- Vai vassoura hoje, dona? - gritava o menino.
-- Nem hoje nem amanhã! - respondia uma malcriada.
-- Não, hoje não! - respondia uma melhor educada.
-- Não, passa outro dia! - respondia quem tinha a generosidade de dar uma migalha de esperança. E assim eles percorriam as ruas daquele bairro, classe média, fincado de trabalhadores em pequenas oficinas, barbearias, borracharias, barzinhos, gente que um dia queria ter mais. E tinham oportunidades que não eram dadas a cegos nem a acompanhantes. Nunca tive contato direto com a dupla. Eu os via do meu posto de observação, a varanda da minha casa, em nível acima da calçada da rua, e ainda protegida por umas persianas semifechadas, semi-abertas. Eles vinham, apertavam a campainha, saía alguém de casa. Não é todo o dia que se precisa de vassoura, mas chega o dia em que isto acontece. E se compra a tal.
-- É de piaçaba? - perguntava alguém entendido em material de limpeza.
-- E da boa, dona! - respondia o menino, já tirando um dos cabos do molho de cabos coloridos. Que cor a senhora quer?
-- Qualquer uma, não importa a cor. Quero vassoura boa, pra varrer de verdade.O cego sorria, pela primeira vez o vi sorrir. (Talvez tenha sido a última também.) Mas não dizia nada. As partes de visão e locução ficavam a cargo do seu acompanhante. A compradora tirava do bolso do seu avental umas moedas, passava-as ao menino, que as dava ao cego, que as apalpava e as metia no bolso da calça, um bolso que parecia bem fundo, pois ele enfiava quase todo o braço por aquele espaço. Já com o rosto erguido, as órbitas azuladas ou vazias, ele dizia:
-- Deus lhe pague!
-- O ceguinho agradece - completava o menino, como se a voz do homem não fosse suficiente. Se não lhe compravam uma vassoura, lhe davam uma tangerina ou um copo de água. Vi isto entre os vizinhos. Quando isto acontecia, o cego encostava seu ramo de vassouras, com ajuda do menino, numa parede qualquer, libertava as mãos e pegava no copo. Como lhe serviam em copo de papel, muitas vezes a água era espremida, sem o homem disto se aperceber, e o líquido lhe descia pelo queixo mais do que pela garganta. Mesmo assim, ele agradecia efusivamente a generosidade de um copo d´água. E continuavam a marcha. Até onde foram? Não saberia dizer. Por quanto tempo mais continuaram nesta andança e semi-mendicância, tampouco posso dizer. A rotina, um dia, terminou. As casas trocaram as vassouras por empregadas movidas por aspirador de pó. E estes olhos, que um dia a terra há de comer, nunca mais viram o ceguinho e seu ajudante.
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