quarta-feira, 23 de novembro de 2005

A vida nem sempre é rosa


Eis-me aqui, dirigindo carrinho de supermercado, e ainda por cima sujo. Ai, Deus! Cinquenta e dois anos, peitos em cima, bunda em cima, umas rugas aqui e ali no rosto, é verdade, sobretudo agora que não tenho mais dinheiro para o botox e para aqueles cremes milagrosos. Milagrosos, desde que se disponha da bufunfa, claro, claro! Disso não disponho mais. Filho de uma puta, me abandonar assim, depois de tantos anos. Dessa vida nova, uma das coisas que mais detesto é ter que vir a supermercado, ainda mais esse aqui cheio de pobre, ô desgraça, olha aquela ali com salto de um metro às três da tarde...e saia curta! Tenha dó, que falta de classe. É o que chamo de falta de classe, estampar assim a piranhice. Cruzes! Olhe bem as palavras que você anda usando, Leda. Deus-me-livre, não é porque você agora é pobre que tem que vir com essas. Mas, enfim, infelizmente aquilo ali não tem outro nome, é piranhice mesmo, e das boas, essas sandálias baratas, tá na cara que são baratas, feias e altas combinadas com mini-saia. Enfim, o que não deve ser barato nesse supermercado? Ai, coitadas, dignas de pena essas moçoilas de ar idiota. Olha só como anda! Dá até vontade de ir lá explicar “Querida, se você não sabe andar com esses saltos, coloque uns mais baixos, você pensa que aquela modelo que você vê na revista sai por aí a fazer compras de salto? Não, não, a elegância consiste em saber a hora disso e daquilo.” Mas quem sou eu para dar conselhos, cinquenta e dois anos de elegância e aqui, largada com uma mesada ridícula. Isso é outra coisa que não entendo, essa mudança dos tempos, antigamente eu via as mulheres se separarem felizes, com uma bela duma pensão, indo curtir a vida numa boa com os namorados....Agora, quando é a minha vez, me sobra essa mixaria. Sinceramente, os tais mistérios! Bom, o mistério maior é que aquele salafrário conseguiu esconder boa parte do dinheiro dele e o juiz preferiu acreditar. Homens! Mas que merda, não acho nada nesse supermercado. E o pior de tudo, o pior, não fui trocada por uma dessas beldades de vinte ou trinta anos, não, nem fui trocada, simplesmente isso, cansou-se de mim, cansou-se, que eu não levasse a mal. Não disse isso nessas palavras, classe é algo que Frederico tinha de sobra, tinha não, tem né, ele não morreu. Agora sei que está tranquilo e calmo percorrendo a Europa com um amigo, inclusive as más línguas dizem....Eu não quero nem saber, estou fora desse jogo mesmo.
Outro mistério desse universo pobre: porque razão alguns têm que vir ao supermercado com toda a prole? Juntam os pirralhos todos e trazem ao supermercado como se aqui fosse parque de diversões. Ai, que saudade da Dona Zuleica viu, com ela eu não precisava nem me lembrar que supermercado existia, escolhia tudo do bom e do melhor, um verdadeiro chefe. Claro, ela está lá com o Frederico, óbvio, primeiro porque nunca gostou mesmo de mim, me tolerava, isso sim e quando eu viajava, eu bem sei, o Frederico podia transformar a casa em clube gls. Sim, no fundo as más línguas têm razão, eu nunca quis dar ouvidos antes porque me convinha, afinal que marido empurra a esposa para férias de um mês, dois meses até, na Europa sem nem perguntar com quem está indo? Pois é, agora aqui estou dirigindo esse carrinho de supermercado. Que merda! Amantes eu tive de sobra, hoje, quando pego a agenda e ouso telefonar para algum deles, só escuto desculpas das mais esfarrapadas, cada um mais ocupado que o outro, viraram homens de negócio, artistas.....o caramba, até parece! É como se eu tivesse uma doença contagiosa. E tenho mesmo, essa doença se chama pobreza, foram-se as viagens, os bons restaurantes. Frederico-filho-da-puta! Quem diria que aquele homem tranqüilo, elegante e bonito podia puxar assim o meu tapete. O juiz diz que o apartamento, o carro e a mesada que ele me deixou são suficientes. Suficientes, senhor juiz? Eu queria ver se o senhor fosse uma mulher de cinquenta anos, aí a gente podia conversar de igual pra igual. Agora uma coisa eu juro, nesse supermercado chinfrim eu não piso nunca mais, nem que eu tenha que começar a vender minhas jóias. Tudo tem limite nessa vida. Ai, Zuleica, traidora! Sim, fique aí com o seu Frederico, o galante, eu, a fútil me cuido só. Ah, não, nessa fila eu não entro, basta, chega dessas economias estúpidas, não quero saber de futuro, vou arrumar uma Zuleica pra mim.


Leila Silva

Anjos de Prata

7 comentários:

Conceição Paulino disse...

menina, os "homes" já n/ são o k eram, nem os divórcios..belíssima escrita.Bom restinho de semana. bj de luz

Anônimo disse...

Como o Manoel, gosto da sua escrita.
Pena da sua persoonagem, tão pobre, mas de espírito.

Nina disse...

Sensacional, Leila!
Amei! Criativa, espontânea, hiper talentosa e nem um tico de pretensão! Lindo, lindo.
beijos de parabéns e boas vindas!

Anônimo disse...

Cara Leila, faço minhas todas as exclamações elogiosas dos comentários anteriores. Agora as multiplique e eleve-as à enésima potência! Isso mesmo, está simplesmente espetacular! Um grande abraço e parabéns!

Helena disse...

Leila, voltou com tudo! Parabéns, excelente texto, personagem muito bem construida. Arrasou.

E obrigada pela visita e o comentários nos errantes.

beijão,

Mhel

Anônimo disse...

Bravíssimo, leila! Delícia de conto.
beijo daqui.

Laura_Diz disse...

hahaha, muito bom. Eu conheço alguns casos assim, li rindo. :)
tenho um conto chamado "A viagem" que o sujeito manda a mulher para NY e fica com a amante. Lembrei deste caso, eu conheci uma mulher assim, só que ela não se separou, ia largar o osso?
Está lá no blog.
Parabéns.