Conto de Daisy Melo. Nossa colega da Anjos de prata que tem um excelente blog novinho em folha: Olhos do Sol.
Nota da autora: Conto baseado em o bebê de Tartalana Rosa de João do Rio.
O carnaval é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto. Ora, quem não tem sua história de amores perdidos ou achados entre confetes e serpentinas?
Olhando a TV, insone, onde as alas passam com coloridos apressados, (nem sei qual Escola está desfilando) vejo refletido na tela, um rosto macilento, angustiado, de um homem ignóbil, medroso, quase morto, que não me deixa esquecer um fevereiro acontecido há muitos anos. Eu era jovem e tudo então era delicioso. Não havia no carnaval quem não estivesse disposto à surpresas. Os sorrisos eram ofertas, os olhos suplicavam. E os corpos, as pernas, as bundas... Eu era todo momento, todo espera.
Fui com um grupo. Saímos num bloco em Ipanema. Eu usava uma sunga florida, colares havaianos ao pescoço, o peito nu. Lá pelas tantas, cutucou-me uma mão enluvada. Olhei as pernas. Bonitas. Verifiquei os braços, a curva do seio. Vestida de coelhinha, o corpo perfeito, bronzeado. Quanto ao rosto, era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda que se ofertava - vontade de morder aquela boca como se fosse um morango maduro, mastigar e engolir o sumo levemente ácido – e uma máscara que tampava o nariz. Tentei beijar-lhe. Culpa da cerveja. Ela recuou, eu me ressenti. Em meio a surdos e tamborins desapareceu mandando-me um adeusinho com as pontas dos dedos. Procurei-a, então, enlouquecido – não tanto pela cerveja, nem pelo batuque - por entre os rostos fantasiados, corpos suados, coloridas alegorias. Ela sumira, a danadinha, junto à multidão. Um homossexual com trejeitos e rebolados, acercou-se de mim vestido de bailarina, soprou-me beijos, tentou me tocar dando-me um encontrão, mas desistiu ao ver a minha careta de raiva e o movimento que fiz com o punho – veado nojento!
Procurei-a por toda noite por entre as ruas do bairro. Não a encontrei. Fiquei desolado.
Já de madrugada, um bate-que-bate longínquo fazia coro com alguns retardatários bêbados que, cambaleantes, atravessavam o samba e a rua. Uma vampira vomitava no chão uma gosma espessa, amparada pelo árabe e a amiga de oncinha. A colombina se atracava com o palhaço já livre da peruca e do nariz, quando a encontrei sentada ao meio-fio de uma das pistas da Vieira Souto, notadamente “alta”.
Aproximei-me com cuidado, segurando-lhe o braço: “Não vai mais fugir, morena”. Enlacei-lhe a cintura e dei-lhe um beijo com toda a paixão e enternecimento que minha situação de carnavalesco ébrio me permitia. Ela assentiu, abraçando-me com força. Deixou-se ficar, as pernas muito juntas, os olhos fechados, imóvel, a balbuciar “meu Deus, meu Deus”, quase desfalecendo. Aquilo me causou um tesão indescritível, logo percebido pelo volume desproporcional na minha sunga. Até que, alguns beijos e muitos minutos depois, tentei tirar-lhe a máscara, mas minha coelhinha assustou-se e escorregou-me dos braços, sumindo novamente ao entrar na Joana Angélica quase correndo.
Não consegui dormir de tesão, frustração e ressaca. Jurei que iria conseguir mais do que beijos no dia seguinte. O carnaval de 75 não ia terminar sem que eu a levasse para cama. Ah, não...
No segundo dia voltei esperando encontrá-la. Chovia fininho, gotas concentradas. Passei longas e torturantes horas, perscrutando cada rosto feminino, buscando cada fantasia cor-de-rosa, percorrendo cada rua, cada bar de Ipanema. A noite já ia alta quando a achei, finalmente, junto à bateria de um bloco sonolento. Sambava. A máscara avultava, parecia crescer. Cheguei-me sorrateiro e beijei-lhe o cangote. Senti uma mistura de loção barata, suor e um leve cheiro de éter, que aumentou em muito o meu desejo. Naquela altura, não pensava em mais nada. Finquei minhas unhas nos seus braços roliços, arranhando sua pele morena. Abocanhei aquela boca carnuda, até sentir na minha um gosto acre de sangue. Ela chegou a tocar com a palma da mão o pára-brisa dum automóvel que passava, enquanto eu agarrava seus cabelos revoltos. Gemia novamente murmurando “meu Deus, meu Deus”, e senti no seu hálito quente e arquejante, o bafo dos animais acuados. Mas fui correspondido e no calor da batucada ela me abraçou, me beijou. Quase soluçava. O tesão foi nos envolvendo, colando pele com pele. Eu a queria, eu era o predador, eu a teria, mas a máscara roçava meu rosto. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão direita, enquanto que com a esquerda a enlaçava mais. De chofre agarrei a máscara. Seus olhos dilataram-se de surpresa. Os meus zombaram de mim. O que vi me causou horror: era uma cabeça estranha, sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão de onde saía uma gosma amarela, viscosa e purulenta.
Recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu nojo. Por um segundo levei a mão ao rosto encobrindo o meu nariz como se não quisesse respirar, enquanto com a outra me preparei para esmurrá-la.
Dei-lhe um soco, sacudi-a com fúria. Ao longe um “abre alas que eu quero passar”. Ela chorava, suplicava baixinho, quase tive pena. Mas o desejo de fazer desaparecer aquele rosto monstruoso, pútrido, de quebrar aqueles dentes estranhos abaixo daquele nariz inexistente era quase imperioso. Não pude me controlar e quanto mais eu ouvia o tum-tum da bateria, mais eu tinha a certeza que ele soava dentro de mim. Tum-tum... Vísceras, sangue... Ódio... Nojo, nojo, nojo...Tum-tum...tum-tum...
Consegui, a custo, afastar-me. Mas não antes de deixar jogado no chão, uma massa desfigurada, hedionda e sangrenta que se misturava à chuva que agora caía com ímpeto. Um corpo disforme e sangrento como o rosto.
Apressei o passo e ao chegar à Praça General Osório, inconscientemente, pus-me a correr como um louco para a casa, o queixo batendo, suando frio, ardendo em febre, parando de quando em vez para respirar e sufocar a ânsia, o nojo, o vômito. Figuras saíam das sombras, os corpos seminus, as fantasias exuberantes, o colorido gasto, manchado pelo temporal. Eram olhos, bocas, seios. Eram pernas, umbigos e nádegas, mercadorias de várias cores, tamanhos e texturas que se ofereciam, agarravam-me, puxavam-me, levavam-me ao compasso do samba. Mas eu só enxergava aquele rosto...Aquele rosto.
Passaram-se semanas, meses. Eu num torpor, sem que tivesse qualquer noticia daquela coitada. Lançava-me às manchetes diárias como um cão faminto chafurdando nas latas de lixo. E nada. Não era possível. Eu a matara, tinha certeza. E foi na frente de todo mundo! Não dormia ouvindo passos no corredor: “são eles, a polícia, vêem me buscar”, temia. E nada. Sofri horríveis pesadelos onde via aquele rosto beijando-me em cópula e eu num gozo louco, esmurrando-o, esmurrando-o, esmurrando-o...
Hoje, trinta anos depois, não esqueço o supremo horror que senti ao olhar aquele rosto disforme. Está tatuado na minha angústia, nos meus pesadelos. É como se de repente eu tivesse aberto a porta de um porão escuro, onde se escondiam centenas de espíritos aflitos e monstruosos. São imagens que se sobrepõem, confundem-me. São vozes que brotam em minha mente, a princípio fluidas, fugazes, sussurros apenas, ecos distantes que depois se transformam em presença, em uma mão enluvada ou em uma fantasia de coelhinha. Vão enredando-me em meus véus, plantando dentro de mim a semente da minha própria dor e incerteza. São delírios, anseios, nojo, nojo, nojo...
Mas nada me causa mais terror, ímpeto, dor e asco do que aquela lembrança insistente, corpórea. Aquela ferida eterna na minha alma, marca indelével de brasa e fogo: quando parei à porta do meu apartamento para procurar a chave é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era a máscara.
3 comentários:
Beleza de conto da Day, Leila. Já fiz a análise lá na OE. Beijo.
Pois é. A vida é uma infinita quarta-feira de cinzas e a ressaca, eterna.
A beleza do conto que você apresentea, só refoça a tese de que para escrever bem como você é preciso ler coisa boas assim.
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