quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um passo atrás dos “atiradores da elite”

O Blog do Brizola Neto é dos melhores (minha opinião, evidentemente) para se acompanhar as eleições, é atualizado o tempo todo, as análises são muito boas, é dinâmico, coerente. É bem melhor do que ler a Folha de São Paulo que não compro faz tempo e tenho entrado no site cada vez menos, outros como o Globo são piores ainda.

Tijolaço

Era um tanto previsível, como falei esta madrugada, que o Datafolha recuassse na sua ousada manobra de terça-feira, destinada a criar um clim derrotista (ainda que apenas de 1º turno) na campanha de Dilma Rousseff. Com os números saídos ontemdo Ibope e do Sensus, ambas dando 10 pontos de vantagem de Dilma sobre a soma Serra + Marina Silva, era forçoso que o instituto, a tão poucos dias das eleições, não pudesse se manter numa posição ainda mais díspar em relação aos demais levantamentos.

Disse mais díspar, porque díspar já é: ao “devolver” três pontos à diferença entre Dilma e os demais, saindo dos incríveis 2 pontos de terça para os atuais cinco, o Datafolha ainda está – prestem atenção – fora dos eixos, porque não há uma pesquisa sequer que coloque esta vantagem, no mínimo, em valor dobrado ao que dá o Datafolha.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Para jornal inglês, Dilma enfrenta o “enfadonho”

Tomei a liberdade de reproduzir o post do Escrevinhador

A mulher mais poderosa do mundo começará a andar com as próprias pernas no próximo fim de semana. Forte e vigorosa aos 63 anos, essa ex-líder da resistência a uma ditadura militar (que a torturou) se prepara para conquistar o seu lugar como Presidente do Brasil.

Como chefe de estado, a Presidente Dilma Rousseff irá se tornar mais poderosa que a Chanceler da Alemanha, Angela Merkel e que a Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton: seu país enorme de 200 milhões de pessoas está comemorando seu novo tesouro petrolífero. A taxa de crescimento do Brasil, rivalizando com a China, é algo que a Europa e Washington podem apenas invejar.

Sua ampla vitória prevista para a próxima eleição presidencial será comemorada com encantamento por milhões. Marca a demolição final do “estado de segurança nacional”, um arranjo que os governos conservadores, nos EUA e na Europa uma vez tomaram como seu melhor artifício para limitar a democracia e a reforma. Ele sustenta um status quo corrompido que mantém a imensa maioria na pobreza na América Latina, enquanto favorece seus amigos ricos.

A senhora Rousseff, a filha de um imigrante búlgaro no Brasil e de sua esposa, professora primária, foi beneficiada por ser, de fato, a primeira ministra do imensamente popular Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ex-líder sindical. Mas com uma história de determinação e sucesso (que inclui ter se curado de um câncer linfático), essa companheira, mãe e avó será mulher por si mesma. As pesquisas mostram que ela construiu uma posição inexpugnável – de mais de 50%, comparado com menos de 30% – sobre o seu rival mais próximo, homem enfadonho de centro, chamado José Serra. Há pouca dúvida de que ela estará instalada no Palácio Presidencial Alvorada de Brasília, em janeiro.

Assim como o Presidente Jose Mujica do Uruguai, vizinho do Brasil, a senhora Rousseff não se constrange com um passado numa guerrilha urbana, que incluiu o combate a generais e um tempo na cadeia como prisioneira política.

Quando menina, na provinciana cidade de Belo Horizonte, ela diz que sonhava respectivamente em se tornar bailarina, bombeira e uma artista de trapézio. As freiras de sua escola levavam suas turmas para as áreas pobres para mostrá-las a grande desigualdade entre a minoria de classe média e a vasta maioria de pobres. Ela lembra que quando um menino pobre de olhos tristes chegou à porta da casa de sua família ela rasgou uma nota de dinheiro pela metade e dividiu com ele, sem saber que metade de uma nota não tinha valor.

Seu pai, Pedro, morreu quando ela tinha 14 anos, mas a essas alturas ele já tinha apresentado a Dilma os romances de Zola e Dostoiévski. Depois disso, ela e seus irmãos tiveram de batalhar duro com sua mãe para alcançar seus objetivos. Aos 16 anos ela estava na POLOP (Política Operária), um grupo organizado por fora do tradicional Partido Comunista Brasileiro que buscava trazer o socialismo para quem pouco sabia a seu respeito.

Os generais tomaram o poder em 1964 e instauraram um reino de terror para defender o que chamaram “segurança nacional”. Ela se juntou aos grupos radicais secretos que não viam nada de errado em pegar em armas para combater um regime militar ilegítimo. Além de agradarem aos ricos e esmagar sindicatos e classes baixas, os generais censuraram a imprensa, proibindo editores de deixarem espaços vazios nos jornais para mostrar onde as notícias tinham sido suprimidas.

A senhora Rousseff terminou na clandestina VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares). Nos anos 60 e 70, os membros dessas organizações sequestravam diplomatas estrangeiros para resgatar prisioneiros: um embaixador dos EUA foi trocado por uma dúzia de prisioneiros políticos; um embaixador alemão foi trocado por 40 militantes; um representante suíço, trocado por 70. Eles também balearam torturadores especialistas estrangeiros enviados para treinar os esquadrões da morte dos generais. Embora diga que nunca usou armas, ela chegou a ser capturada e torturada pela polícia secreta na equivalente brasileira de Abu Ghraib, o presídio Tiradentes, em São Paulo. Ela recebeu uma sentença de 25 meses por “subversão” e foi libertada depois de três anos. Hoje ela confessa abertamente ter “querido mudar o mundo”.

Em 1973 ela se mudou para o próspero estado do sul, o Rio Grande do Sul, onde seu segundo marido, um advogado, estava terminando de cumprir sua pena como prisioneiro político (seu primeiro casamento com um jovem militante de esquerda, Claudio Galeno, não sobreviveu às tensões de duas pessoas na correria, em cidades diferentes). Ela voltou à universidade, começou a trabalhar para o governo do estado em 1975, e teve uma filha, Paula.

Em 1986 ela foi nomeada secretária de finanças da cidade de Porto Alegre, a capital do estado, onde seus talentos políticos começaram a florescer. Os anos 1990 foram anos de bons ventos para ela. Em 1993 ela foi nomeada secretária de minas e energia do estado, e impulsionou amplamente o aumento da produção de energia, assegurando que o estado enfrentasse o racionamento de energia de que o resto do país padeceu.

Ela tinha mil quilômetros de novas linhas de energia elétrica, novas barragens e estações de energia térmica construídas, enquanto persuadia os cidadãos a desligarem as luzes sempre que pudessem. Sua estrela política começou a brilhar muito. Mas em 1994, depois de 24 anos juntos, ela se separou do Senhor Araújo, aparentemente de maneira amigável. Ao mesmo tempo ela se voltou à vida acadêmica e política, mas sua tentativa de concluir o doutorado em ciências sociais fracassou em 1998.

Em 2000 ela adquiriu seu espaço com Lula e seu Partido dos Trabalhadores, que se volta sucessivamente para a combinação de crescimento econômico com o ataque à pobreza. Os dois se deram bem imediatamente e ela se tornou sua primeira ministra de energia em 2003. Dois anos depois ele a tornou chefe da casa civil e desde então passou a apostar nela para a sua sucessão. Ela estava ao lado de Lula quando o Brasil encontrou uma vasta camada de petróleo, ajudando o líder que muitos da mídia européia e estadunidense denunciaram uma década atrás como um militante da extrema esquerda a retirar 24 milhões de brasileiros da pobreza. Lula estava com ela em abril do ano passado quando foi diagnosticada com um câncer linfático, uma condição declarada sob controle há um ano. Denúncias recentes de irregularidades financeiras entre membros de sua equipe quando estava no governo não parecem ter abalado a popularidade da candidata.

A Senhora Rousseff provavelmente convidará o Presidente Mujica do Uruguai para sua posse no Ano Novo. O Presidente Evo Morales, da Bolívia, o Presidente Hugo Chávez, da Venezuela e o Presidente Lugo, do Paraguai – outros líderes bem sucedidos da América do Sul que, como ela, têm sofrido ataques de campanhas impiedosas de degradação na mídia ocidental – certamente também estarão lá. Será uma celebração da decência política – e do feminismo.

Tradução: Katarina Peixoto

O Escrevinhador

domingo, 19 de setembro de 2010

Primo Levi

No feriado de 7 de setembro eu viajei um pouco, mas mais interessante que a viagem foi a leitura de mais um livro de Primo Levi, A Trégua. Neste livro, que é autobiográfico como toda ou quase toda sua obra, ele narra a viagem de volta à Itália depois do final da guerra. Se é que uma guerra termina, num dado momento do livro um dos seus companheiros de desgraça lhe diz, para dar um sacolejo: "Guerra é sempre'. Para os que não sabem, Primo Levi era um judeu italiano, um jovem químico na época do holocausto. O primeiro livro que li dele, há muitos anos, foi emprestado pela minha irmã que o leu no curso de história quando estava fazendo um trabalho sobre memória, chama-se Os Afogados e os Sobreviventes. Já nessa época fiquei muito impressionada e pretendo ler todos os livros dele que encontrar por mais tristes que sejam.
Triste sobretudo depois de eu ter vivido vários anos na Europa e de ter tido contato com tanta gente que, ainda hoje, está marcada pelo holocausto. Historicamente foi 'ontem'. O pai do meu marido era um sobrevivente do holocausto, passou vários anos em campos de concentração, quando saiu não pesava 40 kilos, inúmeros problemas de saúde e problemas psicológicos dos quais nunca se livrou, só na morte. O avó materno das filhas do meu marido, que era alemão e judeu, perdeu a mãe e outros familiares no holocausto.
Um dia, quando vivia em Bruxelas, uma vizinha, uma senhora luxemburguesa, me parou no corredor para reclamar de outro vizinho, um chileno realmente insuportável mal educado e violento, eu ainda não o conhecia direito e resolvi tentar uma defesa tosca, disse 'madame, um pouco de paciência, vai ver que ele foi muito maltratado por Pinochet.....' e tive que ouvir uma hora de aula de história sobre a segunda guerra e tudo que ela e a família tinham passado para me dizer que 'nada' justificava as atitudes do vizinho. Era assim na Europa, às vezes no meio de um jantar o assunto surgia, eu sempre prestava muita atenção, não que o assunto fosse novo, mas a proximidade com vítimas e testemunhos, isso era muito novo. Lendo Primo Levi, aprendo mais ainda e aí me perguntei "sim, conheço um pouco mais sobre a segunda guerra, conheço o testemunho de mais um sobrevivente, isso ajuda em quê? Se amanhã houver algo parecido (ou algo parecido não estaria acontecendo hoje em algum lugar no mundo?) esse conhecimento me ajudaria de que modo? O que eu poderia fazer para ajudar a evitar?" Talvez por eu ser muito pessimista a resposta a que cheguei foi a de que, muito provavelmente, isso não ajudaria em nada. Não somos super heróis. O companheiro da minha irmã é também sobrevivente de uma tragédia política, (ou se lá como chamar isso), é ruandês. Um dia, não falávamos do genocídio no seu país que não é seu assunto preferido, mas sim do holocausto e ele disse que achava que certas coisas era 'melhor tentar esquecer'. Pode ser que tenha razão, mas não consigo aceitar isso e prefiro seguir sabendo, mesmo sendo impotente.

Um trecho de A Trégua:

"Regressávamos mais ricos ou mais pobres, mais fortes ou mais vazios? Não sabíamos: mas sabíamos que nos patamares das nossas casas, para o bem ou para o mal, nos esperava uma prova, e aguardávamo-la com temor."
....
Na foto Primo Levi com seu olhar triste.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Serra se irrita e ameaça deixar entrevista em programa de TV

Redação Carta Capital

15 de setembro de 2010 às 15:54h

(atualizada às 18h27)

Portal Terra revela bastidores da gravação do programa Jogos do Poder, da CNT. Reproduzimos artigo da jornalista Priscila Tieppo, que conta como aconteceu

O candidato José Serra, ao que parece, está cansado de discutir o escândalo da Receita Federal. Na gravação de programa que vai ao ar hoje, ele desrespeitou a apresentadora Márcia Peltier e chegou a interromper a entrevista. A jornalista Priscila Tieppo, do Portal Terra, conta o que aconteceu:

Por Priscila Tieppo

Em gravação do programa Jogo do Poder, da CNT, o candidato do PSDB à presidência da República, José Serra, se irritou com perguntas sobre a quebra de sigilos de tucanos e pesquisas e ameaçou deixar a entrevista.

Ouça aqui o áudio da discussão entre Serra e Márcia Peltier

O candidato disse que eles “estavam perdendo tempo falando daqueles assuntos”, enquanto podiam dar ênfase aos programas de governo dele. Após a apresentadora Márcia Peltier citar que a quebra de sigilo teria acontecido em 2009, antes do anúncio das candidaturas à presidência, Serra subiu o tom:
- Que antes da candidatura, Márcia? Nós estamos gastando tempo aqui precioso, estamos repetindo os argumentos do PT, que você sabe que são fajutos, estamos perdendo tempo aqui.

Márcia tentou contemporizar, mas não conseguiu acalmá-lo. “A candidata do PT virá aqui?”, perguntou. Após a afirmativa de Márcia, ele retrucou: “então, pergunta para ela”.

“Agora nós vamos falar sobre programas”, tentou prosseguir a apresentadora. Neste momento, Serra levantou-se e ameaçou sair do estúdio. Tentando arrumar o fio do microfone, disse: “eu não vou dar essa entrevista, você me desculpa”.

Márcia insistiu dizendo que eles falariam de programa de governo, mas ele se manteve firme. “Faz de conta que eu não vim”. “Mas porquê, candidato?”, disse, ainda sentada. “Porque não tem nada a ver com pergunta, não é um troço sério. (…) Apaga aqui”. “O que o senhor quer que apague?”, perguntou Márcia. “Apague a TV pra gente conversar”.

Márcia pediu que as câmeras fossem desligadas e as luzes do estúdio apagadas, mas Serra continuou falando: “porque isso aqui está parecendo montado”. “Montado para quem? Aqui não tem isso”, defendeu a jornalista.

O candidato voltou a reclamar da pauta das perguntas – que até então, havia se fixado nos acessos fiscais e sobre as pesquisas. “Me disseram que eu ia falar de política e economia”.

Depois de conversar reservadamente com Márcia e o apresentador Alon Feuerwerker, Serra voltou ao estúdio e respondeu a questionamentos sobre economia, saúde e saneamento básico.

Ao final da gravação, Serra foi questionado pelos jornalistas que estavam no local sobre sua irritação. O candidato negou ter se irritado e afirmou que apenas estava “com estômago ruim” porque não tinha tomado café da manhã.

Segundo a assessoria de imprensa da emissora, as perguntas feitas ao candidatos sobre os assuntos que o incomodaram serão mantidas na edição que irá ao ar nesta quarta-feira (15), às 22h50.
.....
[Eu vi parte desta entrevista, uma coisa constrangedora. Certa vez li uma entrevista daquele maestro que foi demitido da OSESP por Fernando Henrique Cardoso, ele dizia que o Serra era um 'menino mimado', é realmente o que parece]

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Poema da sexta-feira

Ando precisada de música

Ando precisada de música que deflua
sobre meus dedos irritados, sensíveis,
sobre meus lábios bronzeados, flexíveis,
com profunda melodia, clara e lenta grua.
Ah, a lenitiva ginga, lenta e crua,
de uma canção para acalmar os fartos mortos,
uma canção caindo como água sobre os corpos
crispando braços, sonho que à chama se gradua!
Há uma mágica feita pela melodia:
um feitiço dolente, e fôlego quieto, e frio
peito, que mergulha fundo por murcha cor
para a subaquática calma da baía,
e flutua sempiterno num lago lunar-frágil,
nos braços do ritmo e do torpor.

Elizabeth Bishop
Tradução de Paulo Henriques Britto


....

Am in Need of Music


I am in need of music that would flow
Over my fretful, feeling fingertips,
Over my bitter-tainted, trembling lips,
With melody, deep, clear, and liquid-slow.
Oh, for the healing swaying, old and low,
Of some song sung to rest the tired dead,
A song to fall like water on my head,
And over quivering limbs, dream flushed to glow!

There is a magic made by melody:
A spell of rest, and quiet breath, and cool
Heart, that sinks through fading colors deep
To the subaqueous stillness of the sea,
And floats forever in a moon-green pool,
Held in the arms of rhythm and of sleep.

Elizabeth Bishop

Serra sabia de quebra de sigilo da família quando era governador

Em reportagem do SBT, candidato admite que já sabia da existência de quadrilhas especializadas em roubar dados pessoais de cidadãos

Por Fábio M. Michel*

O blog Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim, resgata reportagem do SBT mostrando a ação criminosa de venda de informações pessoais e fiscais de milhões de brasileiros. Na matéria, o então governador José Serra afirma ter conhecimento da existência desse tipo de delito e admite que até seus familiares seriam vítimas dos bandidos.

Outras autoridades também foram ouvidos pelos repórteres do SBT, entre eles o ministro da Fazenda, Guido Mantega, o ex-ministro e atual candidato a governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro e o ministro do STF Gilmar Mendes. Até o próprio presidente Lula – e sua família -, além do próprio José Serra, são mostrados em situação vulnerável em relação aos seus sigilos.

A admissão de conhecimento por parte de Serra da existência anterior de problemas para conter o avanço de quadrilhas especializadas em invadir sistemas e bancos de dados pode enfraquecer a tática de campanha do presidenciável, que tenta encontrar motivação política e eleitoral para os recentes episódios envolvendo suspeitas de quebra de sigilo de sua filha, Verônica Serra, e de membros ligados ao PSDB.

Assista ao video da reportagem: You Tube

*Matéria originalmente publicada na Rede Brasil Atual

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O Poema da sexta-feira

A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade