quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Cadernos do Oriente

O jumento de Ghizhou

(Liu Zongyuan – 773-819, China)

Não havia jumentos em Guizhou, até que alguém pôs um num barco e o transportou para lá. Porém, não sabendo bem o que fazer com ele, deixou-o solto nas montanhas. Um tigre, ao ver aquele bicho disforme, pensou que fosse um ser divino. Primeiro, bem escondido, observou-o atentamente. Depois ousou aproximar-se, mantendo ainda uma respeitável distância.
Um dia o jumento zurrou. O tigre se assustou e, com medo de ser mordido, fugiu apavorado. Mas voltou para dar mais uma olhada e decidiu que a criatura, afinal, não era assim tão temível. Acostumando-se com os zurros, chegou mais perto. Já colado praticamente no outro, e agora tomando muitas liberdades, o tigre passou a azucrinar o jumento com repetidos avanços. Esse, enfim, perdendo a paciência, deu-lhe um coice.
“Ah, pois então é só isso que ele consegue fazer”, pensou o tigre entusiasmado que, ato contínuo, pulou sobre o jumento, cravou-lhe os dentes no pescoço, devorou-o o quanto pôde e prosseguiu o caminho.

Pobre jumento! Seu tamanho lhe dava uma aparência de força, seu zurro inspirava medo. Caso ele não tivesse mostrado tudo de que era capaz, o tigre, apesar de tão feroz, provavelmente não teria se arriscado a atacá-lo. Mas tal foi, lamente-se, o intempestivo fim do jumento.

terça-feira, 21 de dezembro de 2004

Insomnia

Toda noite era assim, mal postava a cabeça no travesseiro e já encontrava Morfeu….

Uma noite foi diferente, esperou, esperou e o sono, sempre tão certo, não veio. sem experiência, não sabia onde buscá-lo, só sabia que, no dia seguinte, às seis da manhã, tinha que estar de pé. Ocorreu-lhe então experimentar a mais popular das receitas: contar carneirinhos. Contou e dormiu….

e sonhou que carneiros furiosos a perseguiam.


..........................................................................................................



“Todos somos locos,
los unos y los otros”.

Quevedo

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Molière, o impostor!


Molière impostor, quem diria? Bom, aparentemente muita gente, pelo menos é o que diz um artigo que acabo de ler na revista ‘Magazine Littéraire’, n. 433. As maiores peças de Molière não teriam sido escritas por Corneille? O debate nem parece novo, Pierre Louys já tinha levantado a hipótese baseado numa intuição em função das semelhanças de estilo, de língua e de situações.
Hoje um historiador, Pierre Boissier, volta ao antigo tema e vai ainda mais longe que seus predecessores, afirmando que Molière nunca escreveu uma única peça em toda a sua vida. No seu livro l’affaire Molière, o historiador trata Molière como ‘Le comédien’ (o ator) e nunca como escritor. Os fatos são, no mínimo, perturbadores – diz a revista – pois Molière trabalhou em inúmeras peças de Corneille e foi quando este parou de escrever que o talento de Voltaire desabrochou.

Apesar da séria documentação já levantada, alguns consideram que ainda é cedo para se tirar conclusões. Por que Corneille teria feito isso sem deixar nenhuma pista, uma confissão, uma carta que pudesse ser lida depois de sua morte? É uma questão importante a ser respondida, acredita o autor do artigo.

....................................................................
“These words I write keep me from total madness.”

Charles Bukowski

sábado, 4 de dezembro de 2004

Cenas repetidas

Atlanta 8 de junho de 2004

Entre Atlanta e Nova York


Sob a ducha ainda pensei que essa era uma vida das mais estranhas, em menos de seis meses estava eu ali de novo, dizendo adeus a mais um apartamento. Branco e vazio. Adios Atlanta! A água daquele chuveiro lavava-me pela última vez, pela última vez, uma hora depois eu fecharia a porta daquele apartamento, meia hora depois eu abraçaria Aufra esperando que não fosse a última vez e depois percorreria a highway que nos levaria ao aeroporto. Pela última vez, talvez. Talvez não.
Agora, triste e confessional, contemplo ora as nuvens, ora o grafite deste lápis que desliza na folha. Uma aeromoça nervosa e apressada serve-me uma água com gás e recolhe de má vontade o pacotinho de pretzel que eu recusei. Em alguns instantes Nova York se apresentará num relance, entre um aeroporto e outro. Bye! Bye! A outra aeromoça – longa, de unhas também longas (coitada!) – serve com menos pressa. Mas essa não caiu para mim. [Aprecio o grafite no papel]
………………………………………………………..

[La Guardia airport to JFK]

O nervosismo das grandes cidades. O motorista que nos leva de um aeroporto a outro se aposentará dentro de 54 dias – é o que diz o cartaz postado no painel do ônibus– nem por isso ele está menos irritado, passou um sabão em todos os que se levantaram das poltronas antes da hora. Antes disso já tínhamos suportado o humor tenebroso do rapaz que conferia os bilhetes, irritou-se porque algumas pessoas (eu e P. inclusive) estavam entregando o seu bilhete e o dos acompanhantes ao mesmo tempo. (It confuses me! It confuses me!)Disse e repetiu num inglês muito interessante. Eu ri muito, sem disfarçar. Tanto nervosismo é hilário. É interessante como algumas pessoas levam tão a sério a vida, os bilhetes, as horas, todas as regrinhas. Tudo que é sério demais é risível.

Aeroporto JFK – Espera de mais de três horas – Compro The New Yorker, tomo café…..Singapore airlines me oferece uma orquídea.
No avião, pedaços de filme. Sono.


sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

Deus [Teresa Filósofa]

“Deus parece tão fraco na religião cristã que não pode reduzir o homem ao ponto que gostaria: ele o pune pela água, em seguida pelo fogo, o homem continua o mesmo; ele tem um único filho, ele o envia, contudo os homens não mudam em nada. Quantas coisas ridículas o homem atribui a Deus!” [P.96]

Em: Teresa Filósofa

Anônimo do século XVIII

Um dos maiores clássicos eróticos da Literatura Mundial
L&PM pocket

quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

O longo caminho entre Bruxelas e Budapeste

[Esse é um diário meio esquisito, de uma viagem meio esquisita de três pessoas esquisitas ou em um momento meio esquisito.]

15/07/2004


[Bélgica]
Humores alterados. P. terribilis. Malas rápidas. M. sem trousse de toilette, só escova de dentes. Vai sobrar pra mim!
Única voz no carro, Otis Taylor, Truth is not fiction. Não? O caminho será longo, entretanto, mas a citröen é très confortable e os discos são muitos. O grafite (esse que que desliza na folha) pode acabar e o apontador ficou esquecido em cima do escritório.

Um exercício bom de se fazer em viagem é pensar numa cidade e deixar que algo relacionado a ela venha naturalmente.Poderia propor o joguinho a M. e P., quem sabe o clima não melhora? Ou piora? Por exemplo:
Praga=Kafka,
Barcelona=Gaudí,
Viena=Freud,
Dublin=James Joyce e assim vai.
Algumas cidades se prestam mal ao exercício pois são tantas as coisas que vêm ao espírito que não fica nada em específico: Londres, Paris…
Budapeste é engraçado, a primeira coisa que me veio à cabeça foi Chico Buarque e depois Paulo Rónai. A ordem deveria ter sido alterada mas não é um exercício que deva depender da razão. A atualidade falou mais alto.

15 horas [Bélgica ainda]
Coníferas e nuvens. P. de bode ainda. Mesmo disco.
15:30 – Alemanha
M. reclamou que o disco já rodou muito tempo. Agora com vocês Marisa Monte, primeiro disco. [I heard it trough the grapevine….]
[…………………………………………………………………………………..]
Now, CCR (Credence Clearwater revival).

Now The Kingston Trio.
P. soltou uma frase, disse que a França está logo ali, atrás da Forêt Noire, l’Alsace.

18:40 Como criança que está aprendendo a ler, leio todas as palavras em alemão que vejo nos caminhões, placas….e P. tem que dizer se a pronúncia está certa. Deve ser chato pra ele.
Passamos por uma Trabant e P. se entusiasma. Nostalgia do Oriente.

19:30 Baviera – Parte católica da Alemanha.
A questão de ordem é: que campo de concentração visitar?

Parada para um sanduíche frio e sem graça. O meu é constituído de queijo, presunto, 1 rodela de pepino e uma folhinha de alface.
Rosenheim – a cidade da alemã do filme Bagdá Café. Aqui vamos dormir num hotelzinho simples e limpinho.
Dia 16
9:30 terminando o café da manhã: pãezinhos quentes, queijo, presunto, suco (?), café com leite.
Aqui, as torres das igrejas cristãs me fazem pensar em minaretes.

10:30Áustria – Salzburgo. Visita relâmpago. Havaianas nas vitrines a 20 euros, 25 com bandeirinha brasileira, 30 com plataforma.
Visita a igreja de estilo barrôco.

14:10 Caça ao almoço, tarde demais para os padrões austríacos. Somos servidos de má vontade.Pizza (Pizzera Rimini). Procurando pelos toilettes, quase fui dar nos quartos dos proprietários. Estamos em Linz, cidade onde Hitler nasceu.
Enquanto como, lembro-me que Hund é cachorro em alemão, é o nome do cachorro mecânico em Farenheit 451.

15:00 passando pelo Danúbio que, Segundo M. está mais para verde do que para azul.

M. escolheu visitar o Campo de concentração e extermínio de Mauthausen. (Memorial). Não tenho vontade de comentar, nada pode dar a dimensão de um erro tão grande, nem mesmo a visita a este campo agora limpo e preparado para os curiosos ou os que querem preservar a memória ou os que tentam entender. Eu também tento entender, também penso que a memória deve ser preservada para que os erros do passado sejam evitados. E são? Os americanos se gabam de que ajudaram os europeus a vencer o nazismo, por exemplo. Sei lá…tudo é triste.
Outra coisa terrível: acreditei que eu não fosse capaz de entrar numa camera de gaz. E fui.

Perto de Viena, uma lavoura de girassóis.
[Luiz Gonzaga nos diverte]
Cansados, nos concentramos num filme francês na TV5. (bosta de filme!)

17/07 VIENA
10:00 café da manhã. Eu e M. não entendemos nada do cardápio, deixamos que P. escolha. Feito crianças.
Eu e M. visitamos o Museu Leopold: Anton Kolig, Herbert Boeck, Hans Böhler, Robert Kohl, Jean Egger, Egon……

Visitamos o centro da cidade. Meus pés doem muito e páro para ver esses espetáculos bobos na rua: gente pulando, se fazendo de estátua… aqui, como não poderia deixar de ser, temos muitos Motzarts. Um casal aproveita a lua de mel para apresentar show de equilíbrio e dança….

Noite: Jantamos num restaurante italiano. Cedo para ir dormir mas temos que tentar pois amanhã tomamos o trem antes das seis da manhã para Budapeste. Faz calor e eu me esqueci das sandálias. Devia ter comprado uma daquelas havaianas.

Domingo em Budapeste
18/07 Levantamo-nos às 5:30 e tomamos o trem para a Hungria. Tivemos que deixar o carro em Viena e tomar o trem porque o seguro não inclui a Hungria.
No caminho, campos e campos de girassóis, milharais…Ao meu lado um cara redondinho, todo vestido de preto, dorme e ronca.
Já fomos controlados 4 vezes: 2 vezes o passaporte e duas vezes o bilhete.
8:40 Paramos em Györ, muitos passageiros sobem, temos duas novas companheiras, uma garotinha e a mãe. Vou prestar atenção na língua.
O Danúbio agora é Duna e o euro não é usado por aqui.

15:30 Visitamos, almoçamos, agora descansamos deitados na grama em frente ao Hotel Four Seasons, um prédio magnífico. E rimos. Muito calor. Lindas americanas em flor, deitadas ao lado, também riem.
Depois do descanso visitaremos Peste. Músicos tocam sob o sol terrivelmente quente, P. deitado na grama, dança o pé. Um rapaz, do outro lado da rua dança animado e bate palmas, aproveita o ritmo e bate na bunda de uma moça do grupo que leva um susto. Os meus, agora dormem. A música lembra os filmes de Kusturica, sobretudo Black cat White cat.
Peste. Festival de Cinema Húngaro, em frente ao parlamento, dois telões. Eu e M. assistimos a uma parte do filme em preto e branco e em Húngaro. Ninguém ri.

A noite voltamos para Viena, pegamos o carro e vamos procurar um hotel na Estrada. Só encontramos um às três da manhã, ainda na Austria.


12:20 Atravessamos Munique (Münch)
Almoço em Ulm (15:18)salada. Visita a igreja/mosteiro. Crianças italianas contrariam a ordem e pegam as moedas de um mendigo que, ajoelhado, estendia o seu chapéu. Não resta outra alternativa ao pobre homem senão rir daqueles capetinhas….os pais aparecem irritados e envergonhados. Isso não nos impede de rir.

Caminho: vaquinhas brancas, rolos de feno, reatores nucleares.

Home sweet home.