[Publico aqui um de meus contos antigos, bem antigo mesmo. Aos que já leram peço desculpas....ou releia, se estiver aí só esperando o reveillon. Faça uma blogueira feliz. Na verdade não posso reclamar, não tenho muitos leitores, mas os que tenho são muito fiéis, muitos de vocês me visitam desde 2004. Muito, muito obrigada. Outros leitores apareceram, deixaram comentários super gentis e nenhuma referência, não posso nem agradecer. Quer dizer, agradeço aqui, aos que continuam visitando. É claro que sempre há aqueles desocupados e sem educação que passam por tudo quanto é blog para tentar aporrinhar e deixar comentário mal educado. Esses eu finjo que nem existem e logo desaparecem.
Um abração para todos vocês, um feliz 2008 e muito obrigada mesmo.]
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Conto
Doce é a infância
Na frente da casa, do outro lado da rua, ficava a cadeia. Um dia Lídia, ainda tão pequenina, caminhava sob os mangueirais quando o seu olhar cruzou-se com o de um prisioneiro à janela, as pernas e os braços livres, enfiados na grade. Podia vê-lo muito bem, a cadeia não era cercada por muros. O encontro durou poucos segundos, ela continuou os seus passos lentos, chutou algumas folhas e, decerto, desviou o olhar. Foi então que o prisioneiro disse: ‘Não precisa ter medo.’ Ela chutou mais algumas folhas e continuou a andar olhando para o chão. Não tinha medo, raciocinou, afinal, ele estava do outro lado da grade e ela de fora. Mas quem era ele? Nessa altura, já tinha aprendido que aquela casa amarela não era uma moradia de gente ‘de bem’, muito embora não compreendesse o exato significado disso. Sabia, entretanto, que se a mãe chegasse ao portão e a visse dirigindo a palavra a um prisioneiro ela estaria frita. Não, não respondeu e se perguntou o que teria ele feito para merecer estar ali a observar as mangueiras por detrás daquelas grades enferrujadas. Abandonou o homem à contemplação, atravessou a rua e entrou em casa. Passou direto pela porta da cozinha onde a mãe estava ocupada com as panelas e foi para o fundo do quintal, subiu em alguns tijolos que já estavam estrategicamente postos ali e espreitou o vizinho mudo que passava os seus dias a limpar a casa. Limpava tanto que o chão refletia. Pelo muro ela, as irmãs e primas costumavam observar o mudo e o alpendre reluzente e riam sem saber porquê. O mudo tinha um mico preso por uma corrente e um papagaio. E o papagaio falava. Pois é.
O mudinho, diziam, ia com meninos para o meio do mato. E daí que o mudinho fosse para o mato com os meninos? Ninguém era proibido de andar no mato. Ou a ele isso era proibido só porque era mudo? Mais um dos muitos mistérios. ‘O mudinho vai para o mato com os meninos’. Até a prima viera lhe dizer isso esperando que confessasse a sua ignorância mas ela só fez arregalar bem os olhos como se a revelação a tivesse impressionado muito.
Desceu num pulo dos tijolos quando ouviu a voz nervosa da mãe e, na pressa, arranhou os dedos no muro. A mãe mandou-a comprar verduras e advertiu que não perdesse o dinheiro como tinha feito da última vez. ´Essa menina parece que vive no mundo da lua!` Ouviu a mãe dizer e apertou as notas. Quando voltava, andando devagar e distraída, pela rua seis, a principal, deixou tudo cair por terra. Na sua frente apareceu um menino que ela conhecia de vista do catecismo. Assustou-se com aquela presença, o menino era um demônio que vivia atormentando as irmãs e as meninas, juntava-se a outros e balançava violentamente a corda do sino que retinia desesperado e sem propósito. As irmãs acudiam apressadas, levantando os longos vestidos e ameaçando chamar o padre. Nada disso assustava aquele moleque que, dependurado na corda, gargalhava fazendo blém…blém…blém… e só corria quando as irmãs já estavam bem próximas.
Pois esse mesmo menino estava ali, na sua frente e, num gesto inesperado, ajudou-a a recolher os legumes. Com a cara rubra, pressentindo o pior, balbuciou, timidamente: ‘obrigada’. Ele riu alto e repetiu a última frase da piada do elefante e da formiguinha: ´Obrigado nada, pode ir descendo a calcinha`. Lídia fugiu apavorada deixando para trás umas batatinhas.
Como foi boba, por um segundo acreditou na pureza daquele gesto, por um segundo aquele menino tinha mudado aos seus olhos, não podia ser o diabo que pintavam. Pode ser… pode ser que, por um segundo, a sua intenção tenha sido a de ajudá-la, mas, no último instante, ao olhar para aquele passarinho frágil não tenha resistido à tentação de dar uma pedrada.
Bruxelas, inverno de 2003.