quarta-feira, 23 de novembro de 2005
A vida nem sempre é rosa
Eis-me aqui, dirigindo carrinho de supermercado, e ainda por cima sujo. Ai, Deus! Cinquenta e dois anos, peitos em cima, bunda em cima, umas rugas aqui e ali no rosto, é verdade, sobretudo agora que não tenho mais dinheiro para o botox e para aqueles cremes milagrosos. Milagrosos, desde que se disponha da bufunfa, claro, claro! Disso não disponho mais. Filho de uma puta, me abandonar assim, depois de tantos anos. Dessa vida nova, uma das coisas que mais detesto é ter que vir a supermercado, ainda mais esse aqui cheio de pobre, ô desgraça, olha aquela ali com salto de um metro às três da tarde...e saia curta! Tenha dó, que falta de classe. É o que chamo de falta de classe, estampar assim a piranhice. Cruzes! Olhe bem as palavras que você anda usando, Leda. Deus-me-livre, não é porque você agora é pobre que tem que vir com essas. Mas, enfim, infelizmente aquilo ali não tem outro nome, é piranhice mesmo, e das boas, essas sandálias baratas, tá na cara que são baratas, feias e altas combinadas com mini-saia. Enfim, o que não deve ser barato nesse supermercado? Ai, coitadas, dignas de pena essas moçoilas de ar idiota. Olha só como anda! Dá até vontade de ir lá explicar “Querida, se você não sabe andar com esses saltos, coloque uns mais baixos, você pensa que aquela modelo que você vê na revista sai por aí a fazer compras de salto? Não, não, a elegância consiste em saber a hora disso e daquilo.” Mas quem sou eu para dar conselhos, cinquenta e dois anos de elegância e aqui, largada com uma mesada ridícula. Isso é outra coisa que não entendo, essa mudança dos tempos, antigamente eu via as mulheres se separarem felizes, com uma bela duma pensão, indo curtir a vida numa boa com os namorados....Agora, quando é a minha vez, me sobra essa mixaria. Sinceramente, os tais mistérios! Bom, o mistério maior é que aquele salafrário conseguiu esconder boa parte do dinheiro dele e o juiz preferiu acreditar. Homens! Mas que merda, não acho nada nesse supermercado. E o pior de tudo, o pior, não fui trocada por uma dessas beldades de vinte ou trinta anos, não, nem fui trocada, simplesmente isso, cansou-se de mim, cansou-se, que eu não levasse a mal. Não disse isso nessas palavras, classe é algo que Frederico tinha de sobra, tinha não, tem né, ele não morreu. Agora sei que está tranquilo e calmo percorrendo a Europa com um amigo, inclusive as más línguas dizem....Eu não quero nem saber, estou fora desse jogo mesmo.
Outro mistério desse universo pobre: porque razão alguns têm que vir ao supermercado com toda a prole? Juntam os pirralhos todos e trazem ao supermercado como se aqui fosse parque de diversões. Ai, que saudade da Dona Zuleica viu, com ela eu não precisava nem me lembrar que supermercado existia, escolhia tudo do bom e do melhor, um verdadeiro chefe. Claro, ela está lá com o Frederico, óbvio, primeiro porque nunca gostou mesmo de mim, me tolerava, isso sim e quando eu viajava, eu bem sei, o Frederico podia transformar a casa em clube gls. Sim, no fundo as más línguas têm razão, eu nunca quis dar ouvidos antes porque me convinha, afinal que marido empurra a esposa para férias de um mês, dois meses até, na Europa sem nem perguntar com quem está indo? Pois é, agora aqui estou dirigindo esse carrinho de supermercado. Que merda! Amantes eu tive de sobra, hoje, quando pego a agenda e ouso telefonar para algum deles, só escuto desculpas das mais esfarrapadas, cada um mais ocupado que o outro, viraram homens de negócio, artistas.....o caramba, até parece! É como se eu tivesse uma doença contagiosa. E tenho mesmo, essa doença se chama pobreza, foram-se as viagens, os bons restaurantes. Frederico-filho-da-puta! Quem diria que aquele homem tranqüilo, elegante e bonito podia puxar assim o meu tapete. O juiz diz que o apartamento, o carro e a mesada que ele me deixou são suficientes. Suficientes, senhor juiz? Eu queria ver se o senhor fosse uma mulher de cinquenta anos, aí a gente podia conversar de igual pra igual. Agora uma coisa eu juro, nesse supermercado chinfrim eu não piso nunca mais, nem que eu tenha que começar a vender minhas jóias. Tudo tem limite nessa vida. Ai, Zuleica, traidora! Sim, fique aí com o seu Frederico, o galante, eu, a fútil me cuido só. Ah, não, nessa fila eu não entro, basta, chega dessas economias estúpidas, não quero saber de futuro, vou arrumar uma Zuleica pra mim.
Leila Silva
Anjos de Prata
segunda-feira, 14 de novembro de 2005
A máscara
Conto de Daisy Melo. Nossa colega da Anjos de prata que tem um excelente blog novinho em folha: Olhos do Sol.
Nota da autora: Conto baseado em o bebê de Tartalana Rosa de João do Rio.
O carnaval é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto. Ora, quem não tem sua história de amores perdidos ou achados entre confetes e serpentinas?
Olhando a TV, insone, onde as alas passam com coloridos apressados, (nem sei qual Escola está desfilando) vejo refletido na tela, um rosto macilento, angustiado, de um homem ignóbil, medroso, quase morto, que não me deixa esquecer um fevereiro acontecido há muitos anos. Eu era jovem e tudo então era delicioso. Não havia no carnaval quem não estivesse disposto à surpresas. Os sorrisos eram ofertas, os olhos suplicavam. E os corpos, as pernas, as bundas... Eu era todo momento, todo espera.
Fui com um grupo. Saímos num bloco em Ipanema. Eu usava uma sunga florida, colares havaianos ao pescoço, o peito nu. Lá pelas tantas, cutucou-me uma mão enluvada. Olhei as pernas. Bonitas. Verifiquei os braços, a curva do seio. Vestida de coelhinha, o corpo perfeito, bronzeado. Quanto ao rosto, era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda que se ofertava - vontade de morder aquela boca como se fosse um morango maduro, mastigar e engolir o sumo levemente ácido – e uma máscara que tampava o nariz. Tentei beijar-lhe. Culpa da cerveja. Ela recuou, eu me ressenti. Em meio a surdos e tamborins desapareceu mandando-me um adeusinho com as pontas dos dedos. Procurei-a, então, enlouquecido – não tanto pela cerveja, nem pelo batuque - por entre os rostos fantasiados, corpos suados, coloridas alegorias. Ela sumira, a danadinha, junto à multidão. Um homossexual com trejeitos e rebolados, acercou-se de mim vestido de bailarina, soprou-me beijos, tentou me tocar dando-me um encontrão, mas desistiu ao ver a minha careta de raiva e o movimento que fiz com o punho – veado nojento!
Procurei-a por toda noite por entre as ruas do bairro. Não a encontrei. Fiquei desolado.
Já de madrugada, um bate-que-bate longínquo fazia coro com alguns retardatários bêbados que, cambaleantes, atravessavam o samba e a rua. Uma vampira vomitava no chão uma gosma espessa, amparada pelo árabe e a amiga de oncinha. A colombina se atracava com o palhaço já livre da peruca e do nariz, quando a encontrei sentada ao meio-fio de uma das pistas da Vieira Souto, notadamente “alta”.
Aproximei-me com cuidado, segurando-lhe o braço: “Não vai mais fugir, morena”. Enlacei-lhe a cintura e dei-lhe um beijo com toda a paixão e enternecimento que minha situação de carnavalesco ébrio me permitia. Ela assentiu, abraçando-me com força. Deixou-se ficar, as pernas muito juntas, os olhos fechados, imóvel, a balbuciar “meu Deus, meu Deus”, quase desfalecendo. Aquilo me causou um tesão indescritível, logo percebido pelo volume desproporcional na minha sunga. Até que, alguns beijos e muitos minutos depois, tentei tirar-lhe a máscara, mas minha coelhinha assustou-se e escorregou-me dos braços, sumindo novamente ao entrar na Joana Angélica quase correndo.
Não consegui dormir de tesão, frustração e ressaca. Jurei que iria conseguir mais do que beijos no dia seguinte. O carnaval de 75 não ia terminar sem que eu a levasse para cama. Ah, não...
No segundo dia voltei esperando encontrá-la. Chovia fininho, gotas concentradas. Passei longas e torturantes horas, perscrutando cada rosto feminino, buscando cada fantasia cor-de-rosa, percorrendo cada rua, cada bar de Ipanema. A noite já ia alta quando a achei, finalmente, junto à bateria de um bloco sonolento. Sambava. A máscara avultava, parecia crescer. Cheguei-me sorrateiro e beijei-lhe o cangote. Senti uma mistura de loção barata, suor e um leve cheiro de éter, que aumentou em muito o meu desejo. Naquela altura, não pensava em mais nada. Finquei minhas unhas nos seus braços roliços, arranhando sua pele morena. Abocanhei aquela boca carnuda, até sentir na minha um gosto acre de sangue. Ela chegou a tocar com a palma da mão o pára-brisa dum automóvel que passava, enquanto eu agarrava seus cabelos revoltos. Gemia novamente murmurando “meu Deus, meu Deus”, e senti no seu hálito quente e arquejante, o bafo dos animais acuados. Mas fui correspondido e no calor da batucada ela me abraçou, me beijou. Quase soluçava. O tesão foi nos envolvendo, colando pele com pele. Eu a queria, eu era o predador, eu a teria, mas a máscara roçava meu rosto. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão direita, enquanto que com a esquerda a enlaçava mais. De chofre agarrei a máscara. Seus olhos dilataram-se de surpresa. Os meus zombaram de mim. O que vi me causou horror: era uma cabeça estranha, sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão de onde saía uma gosma amarela, viscosa e purulenta.
Recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu nojo. Por um segundo levei a mão ao rosto encobrindo o meu nariz como se não quisesse respirar, enquanto com a outra me preparei para esmurrá-la.
Dei-lhe um soco, sacudi-a com fúria. Ao longe um “abre alas que eu quero passar”. Ela chorava, suplicava baixinho, quase tive pena. Mas o desejo de fazer desaparecer aquele rosto monstruoso, pútrido, de quebrar aqueles dentes estranhos abaixo daquele nariz inexistente era quase imperioso. Não pude me controlar e quanto mais eu ouvia o tum-tum da bateria, mais eu tinha a certeza que ele soava dentro de mim. Tum-tum... Vísceras, sangue... Ódio... Nojo, nojo, nojo...Tum-tum...tum-tum...
Consegui, a custo, afastar-me. Mas não antes de deixar jogado no chão, uma massa desfigurada, hedionda e sangrenta que se misturava à chuva que agora caía com ímpeto. Um corpo disforme e sangrento como o rosto.
Apressei o passo e ao chegar à Praça General Osório, inconscientemente, pus-me a correr como um louco para a casa, o queixo batendo, suando frio, ardendo em febre, parando de quando em vez para respirar e sufocar a ânsia, o nojo, o vômito. Figuras saíam das sombras, os corpos seminus, as fantasias exuberantes, o colorido gasto, manchado pelo temporal. Eram olhos, bocas, seios. Eram pernas, umbigos e nádegas, mercadorias de várias cores, tamanhos e texturas que se ofereciam, agarravam-me, puxavam-me, levavam-me ao compasso do samba. Mas eu só enxergava aquele rosto...Aquele rosto.
Passaram-se semanas, meses. Eu num torpor, sem que tivesse qualquer noticia daquela coitada. Lançava-me às manchetes diárias como um cão faminto chafurdando nas latas de lixo. E nada. Não era possível. Eu a matara, tinha certeza. E foi na frente de todo mundo! Não dormia ouvindo passos no corredor: “são eles, a polícia, vêem me buscar”, temia. E nada. Sofri horríveis pesadelos onde via aquele rosto beijando-me em cópula e eu num gozo louco, esmurrando-o, esmurrando-o, esmurrando-o...
Hoje, trinta anos depois, não esqueço o supremo horror que senti ao olhar aquele rosto disforme. Está tatuado na minha angústia, nos meus pesadelos. É como se de repente eu tivesse aberto a porta de um porão escuro, onde se escondiam centenas de espíritos aflitos e monstruosos. São imagens que se sobrepõem, confundem-me. São vozes que brotam em minha mente, a princípio fluidas, fugazes, sussurros apenas, ecos distantes que depois se transformam em presença, em uma mão enluvada ou em uma fantasia de coelhinha. Vão enredando-me em meus véus, plantando dentro de mim a semente da minha própria dor e incerteza. São delírios, anseios, nojo, nojo, nojo...
Mas nada me causa mais terror, ímpeto, dor e asco do que aquela lembrança insistente, corpórea. Aquela ferida eterna na minha alma, marca indelével de brasa e fogo: quando parei à porta do meu apartamento para procurar a chave é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era a máscara.
Nota da autora: Conto baseado em o bebê de Tartalana Rosa de João do Rio.
O carnaval é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto. Ora, quem não tem sua história de amores perdidos ou achados entre confetes e serpentinas?
Olhando a TV, insone, onde as alas passam com coloridos apressados, (nem sei qual Escola está desfilando) vejo refletido na tela, um rosto macilento, angustiado, de um homem ignóbil, medroso, quase morto, que não me deixa esquecer um fevereiro acontecido há muitos anos. Eu era jovem e tudo então era delicioso. Não havia no carnaval quem não estivesse disposto à surpresas. Os sorrisos eram ofertas, os olhos suplicavam. E os corpos, as pernas, as bundas... Eu era todo momento, todo espera.
Fui com um grupo. Saímos num bloco em Ipanema. Eu usava uma sunga florida, colares havaianos ao pescoço, o peito nu. Lá pelas tantas, cutucou-me uma mão enluvada. Olhei as pernas. Bonitas. Verifiquei os braços, a curva do seio. Vestida de coelhinha, o corpo perfeito, bronzeado. Quanto ao rosto, era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda que se ofertava - vontade de morder aquela boca como se fosse um morango maduro, mastigar e engolir o sumo levemente ácido – e uma máscara que tampava o nariz. Tentei beijar-lhe. Culpa da cerveja. Ela recuou, eu me ressenti. Em meio a surdos e tamborins desapareceu mandando-me um adeusinho com as pontas dos dedos. Procurei-a, então, enlouquecido – não tanto pela cerveja, nem pelo batuque - por entre os rostos fantasiados, corpos suados, coloridas alegorias. Ela sumira, a danadinha, junto à multidão. Um homossexual com trejeitos e rebolados, acercou-se de mim vestido de bailarina, soprou-me beijos, tentou me tocar dando-me um encontrão, mas desistiu ao ver a minha careta de raiva e o movimento que fiz com o punho – veado nojento!
Procurei-a por toda noite por entre as ruas do bairro. Não a encontrei. Fiquei desolado.
Já de madrugada, um bate-que-bate longínquo fazia coro com alguns retardatários bêbados que, cambaleantes, atravessavam o samba e a rua. Uma vampira vomitava no chão uma gosma espessa, amparada pelo árabe e a amiga de oncinha. A colombina se atracava com o palhaço já livre da peruca e do nariz, quando a encontrei sentada ao meio-fio de uma das pistas da Vieira Souto, notadamente “alta”.
Aproximei-me com cuidado, segurando-lhe o braço: “Não vai mais fugir, morena”. Enlacei-lhe a cintura e dei-lhe um beijo com toda a paixão e enternecimento que minha situação de carnavalesco ébrio me permitia. Ela assentiu, abraçando-me com força. Deixou-se ficar, as pernas muito juntas, os olhos fechados, imóvel, a balbuciar “meu Deus, meu Deus”, quase desfalecendo. Aquilo me causou um tesão indescritível, logo percebido pelo volume desproporcional na minha sunga. Até que, alguns beijos e muitos minutos depois, tentei tirar-lhe a máscara, mas minha coelhinha assustou-se e escorregou-me dos braços, sumindo novamente ao entrar na Joana Angélica quase correndo.
Não consegui dormir de tesão, frustração e ressaca. Jurei que iria conseguir mais do que beijos no dia seguinte. O carnaval de 75 não ia terminar sem que eu a levasse para cama. Ah, não...
No segundo dia voltei esperando encontrá-la. Chovia fininho, gotas concentradas. Passei longas e torturantes horas, perscrutando cada rosto feminino, buscando cada fantasia cor-de-rosa, percorrendo cada rua, cada bar de Ipanema. A noite já ia alta quando a achei, finalmente, junto à bateria de um bloco sonolento. Sambava. A máscara avultava, parecia crescer. Cheguei-me sorrateiro e beijei-lhe o cangote. Senti uma mistura de loção barata, suor e um leve cheiro de éter, que aumentou em muito o meu desejo. Naquela altura, não pensava em mais nada. Finquei minhas unhas nos seus braços roliços, arranhando sua pele morena. Abocanhei aquela boca carnuda, até sentir na minha um gosto acre de sangue. Ela chegou a tocar com a palma da mão o pára-brisa dum automóvel que passava, enquanto eu agarrava seus cabelos revoltos. Gemia novamente murmurando “meu Deus, meu Deus”, e senti no seu hálito quente e arquejante, o bafo dos animais acuados. Mas fui correspondido e no calor da batucada ela me abraçou, me beijou. Quase soluçava. O tesão foi nos envolvendo, colando pele com pele. Eu a queria, eu era o predador, eu a teria, mas a máscara roçava meu rosto. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão direita, enquanto que com a esquerda a enlaçava mais. De chofre agarrei a máscara. Seus olhos dilataram-se de surpresa. Os meus zombaram de mim. O que vi me causou horror: era uma cabeça estranha, sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão de onde saía uma gosma amarela, viscosa e purulenta.
Recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu nojo. Por um segundo levei a mão ao rosto encobrindo o meu nariz como se não quisesse respirar, enquanto com a outra me preparei para esmurrá-la.
Dei-lhe um soco, sacudi-a com fúria. Ao longe um “abre alas que eu quero passar”. Ela chorava, suplicava baixinho, quase tive pena. Mas o desejo de fazer desaparecer aquele rosto monstruoso, pútrido, de quebrar aqueles dentes estranhos abaixo daquele nariz inexistente era quase imperioso. Não pude me controlar e quanto mais eu ouvia o tum-tum da bateria, mais eu tinha a certeza que ele soava dentro de mim. Tum-tum... Vísceras, sangue... Ódio... Nojo, nojo, nojo...Tum-tum...tum-tum...
Consegui, a custo, afastar-me. Mas não antes de deixar jogado no chão, uma massa desfigurada, hedionda e sangrenta que se misturava à chuva que agora caía com ímpeto. Um corpo disforme e sangrento como o rosto.
Apressei o passo e ao chegar à Praça General Osório, inconscientemente, pus-me a correr como um louco para a casa, o queixo batendo, suando frio, ardendo em febre, parando de quando em vez para respirar e sufocar a ânsia, o nojo, o vômito. Figuras saíam das sombras, os corpos seminus, as fantasias exuberantes, o colorido gasto, manchado pelo temporal. Eram olhos, bocas, seios. Eram pernas, umbigos e nádegas, mercadorias de várias cores, tamanhos e texturas que se ofereciam, agarravam-me, puxavam-me, levavam-me ao compasso do samba. Mas eu só enxergava aquele rosto...Aquele rosto.
Passaram-se semanas, meses. Eu num torpor, sem que tivesse qualquer noticia daquela coitada. Lançava-me às manchetes diárias como um cão faminto chafurdando nas latas de lixo. E nada. Não era possível. Eu a matara, tinha certeza. E foi na frente de todo mundo! Não dormia ouvindo passos no corredor: “são eles, a polícia, vêem me buscar”, temia. E nada. Sofri horríveis pesadelos onde via aquele rosto beijando-me em cópula e eu num gozo louco, esmurrando-o, esmurrando-o, esmurrando-o...
Hoje, trinta anos depois, não esqueço o supremo horror que senti ao olhar aquele rosto disforme. Está tatuado na minha angústia, nos meus pesadelos. É como se de repente eu tivesse aberto a porta de um porão escuro, onde se escondiam centenas de espíritos aflitos e monstruosos. São imagens que se sobrepõem, confundem-me. São vozes que brotam em minha mente, a princípio fluidas, fugazes, sussurros apenas, ecos distantes que depois se transformam em presença, em uma mão enluvada ou em uma fantasia de coelhinha. Vão enredando-me em meus véus, plantando dentro de mim a semente da minha própria dor e incerteza. São delírios, anseios, nojo, nojo, nojo...
Mas nada me causa mais terror, ímpeto, dor e asco do que aquela lembrança insistente, corpórea. Aquela ferida eterna na minha alma, marca indelével de brasa e fogo: quando parei à porta do meu apartamento para procurar a chave é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era a máscara.
quarta-feira, 2 de novembro de 2005
O homem de cabeça de papelão
[Sem tempo para organizar ou escrever os meus próprios textos tive a idéia de postar aqui este excelente conto de João do Rio. Um pouco longo, talvez, para ser lido na tela, os pacientes verão que vale a pena.]
João do Rio
No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social. O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.— Mas não quero ser nada disso.— Então quer ser vagabundo?— Quero trabalhar.— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.— Eu não acho.— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.— É doido, mas bom.Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...— É da tua má cabeça, meu filho.— Qual?— A tua cabeça não regula.— Quem sabe?Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.— Só caso se o senhor tomar juízo.— Mas que chama você juízo?— Ser como os mais.— Então você gosta de mim?— E por isso é que só caso depois.Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.— Traz algum relógio?— Trago a minha cabeça.— Ah! Desarranjada?— Dizem-no, pelo menos.— Em todo o caso, há tempo?— Desde que nasci.— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...Antenor atalhou:— E o senhor fica com a minha cabeça?— Se a deixar.— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.— Regula?— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.— Há tempos deixei aqui uma cabeça.— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.— Ah! fez Antenor.— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.— Mas a minha cabeça?— Vou buscá-la.Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.— Consertou-a?— Não.— Então, desarranjo grande?O homem recuou.— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.— Faça o obséquio de embrulhá-la.— Não a coloca?— Não.— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.Antenor ficou seco.— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
João do Rio
No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social. O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.— Mas não quero ser nada disso.— Então quer ser vagabundo?— Quero trabalhar.— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.— Eu não acho.— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.— É doido, mas bom.Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...— É da tua má cabeça, meu filho.— Qual?— A tua cabeça não regula.— Quem sabe?Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.— Só caso se o senhor tomar juízo.— Mas que chama você juízo?— Ser como os mais.— Então você gosta de mim?— E por isso é que só caso depois.Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.— Traz algum relógio?— Trago a minha cabeça.— Ah! Desarranjada?— Dizem-no, pelo menos.— Em todo o caso, há tempo?— Desde que nasci.— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...Antenor atalhou:— E o senhor fica com a minha cabeça?— Se a deixar.— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.— Regula?— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.— Há tempos deixei aqui uma cabeça.— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.— Ah! fez Antenor.— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.— Mas a minha cabeça?— Vou buscá-la.Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.— Consertou-a?— Não.— Então, desarranjo grande?O homem recuou.— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.— Faça o obséquio de embrulhá-la.— Não a coloca?— Não.— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.Antenor ficou seco.— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
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