quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Fogo


Ventava naquele dia em que meu corpo parecia me deixar.
Olhei para fora e contemplei o cedro de folhas agitadas. O coqueiro, quase ao lado, permanecia calmo e elegante. Estranhei o fato, se estavam tão próximos, a força que balançava um não deveria balançar o outro?

Aquele parecia um bom dia para morrer, à hora do ângelus.

Pensei com menos propósito do que aquele cedro e decidi que o céu cinza combinava com um blues, entretanto coloquei The Doors e pensei no meu doce Frederico. Onde estaria?
“Come on baby, light my fire”. Soube, então, que ele ia voltar.

Tinha deixado todos os seus discos.




Manila - Cemitério chinês
foto por Leila Silva

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

Baghdad Burning

De vez em quando gosto de ler as notícias sobre o conflito no Iraque (sei lá como chamar isso) nesse blog:
Baghdad Burning. É mais ou menos como se eu telefonasse para uma amiga de lá e perguntasse: ‘Então, como vão as coisas vistas do interior?’

Deixo aqui um pedacinho do último post, uma reflexão sobre os quatro anos do ataque às torres de Nova Yorque e um balanço das perdas de um lado e de outro. Muito irônica, no final ainda parabeniza os Estados Unidos porque estão ganhando de longe.
....................

It has been four years today. How does it feel four years later? For the 3,000 victims in America, more than 100,000 have died in Iraq. Tens of thousands of others are being detained for interrogation and torture. Our homes have been raided, our cities are constantly being bombed and Iraq has fallen back decades, and for several years to come we will suffer under the influence of the extremism we didn't know prior to the war.

(......)

Four years later and the War on Terror (or is it the War of Terror?) has been won:


Score:

Al-Qaeda – 3,000
America – 100,000+

Congratulations.

Em:Baghdad Burning

sexta-feira, 16 de setembro de 2005

A tia de Amsterdã

Cresci ouvindo falar dela, sonhava com a cidade, com o seu pequeno apartamento com os canais, as bicicletas, as pontes que ela atravessava para ir à padaria, não havia clichê sobre a Holanda que não me atravessasse a cabeça. De vez em quando falávamos ao telefone, tinha que ser em inglês, tia Mônica nunca tinha se interessado pelo português. Não era por desprezo, só não tinha razão para dedicar-se a mais essa língua. Nossa família é do Suriname, mas quase ninguém mais vive lá. Temos todos passaporte holandês, e muitos seguiram o caminho natural, pegaram o passaporte e rumaram para Amsterdã, os que não sabiam viver no frio optaram pelo Brasil. Tia Mônica era gentil no telefone e de vez em quando nos enviava presentes pelo correio ou por algum parente, bombons, camisetas de turista, coisas assim.

Finalmente o dia de visitar essa tia chegou. Feliz e ingênuo, porque as duas coisas andam juntas, com pouco mais que uma mochila nas costas, estava preparado para desbravar os Países Baixos. Na chegada, confusão, minha mala nunca chegava na esteira, já estava tonto de olhar para as bagagens, mas fiquei lá plantado até o momento em que nada mais rodava. Fui informado que teria que esperar até o dia seguinte pelos meus apetrechos, viriam em outro vôo. Na saída encontrei a tia já preocupada, nervosa com um cigarro entre os dedos. Fomos para o seu apartamento, expliquei-lhe que ia ter que comprar pelo menos uma calça. ‘Não se preocupe’, disse e pediu o meu número. Que eu ficasse descansando, ela ia cuidar disso para mim. Saiu às pressas e, em menos de uma hora estava de volta não com uma, mas sete calças. ‘Sete? Tia, não precisava!’ Presente para o sobrinho brasileiro. Fiquei sem graça, mas vai ver que era normal, que ali compravam calças assim, a rodo, um modo de compensar a falta de espaço. Eu mesmo nunca tinha comprado mais de duas de uma só vez.

Durante a semana visitei museus, cafés, cinema, casa de Anne Frank.... De vez em quando a tia desaparecia, ‘um minutinho’, dizia e voltava meio vermelha e com o cigarro trêmulo, tentando acertar os lábios. Uma vez em casa, nem me perguntava se eu queria, preparava duas canecas de chá, me entregava uma e descia para o porão. Um dia decidi dar uma olhada no lugar, um porão, para mim que não estava habituado, era por si só envolto em certo mistério. Aproveitei uma das saídas de tia Mônica e desci a escadinha que cheirava a mofo, a pequena porta estava fechada a chave, mas percebi que havia uma luz acesa lá dentro. Deitei-me no chão e pude ver, através do grande vão abaixo da porta, uns pés de estantes. Nada mais. Escutei um barulho na porta de cima e subi as escadas como um louco, corri para a frente da televisão, peguei o controle e fingi que estava procurando um canal. Estava agindo como uma criança idiota, pensei, com as mãos a tremer. Tremendo pra nada, imbecil curioso. Raiva de mim mesmo, mas logo foi a tia descendo as escadas, escutei a porta se abrir e….pronto, minha curiosidade estava atiçada de novo. Fui até a ponta da escada e perguntei, muito gentil, ‘Tia, quer ajuda?’ Ela subiu no mesmo instante e, sem graça, procurando o cigarro, disse: ‘Não, não, aquilo ali está uma bagunça só, melhor ficar longe.’ ‘Se quiser posso te ajudar a arrumar.’ ‘Não, um dia, um dia’ E a pequena chave foi discretamente para o bolso do casaco que ficava pendurado perto da porta de entrada, ela não saía sem ele.

De manhã, quando ela me propôs que saíssemos, aleguei dor de cabeça e sugeri que ela fosse só, eu poderia encontrá-la mais tarde, já conseguia me virar pela cidade, era só me dizer onde. Expliquei e fui lhe entregando o casaco. Distraí-a com umas histórias de família e consegui pegar a chave enquanto a ajudava a vesti-lo.. Pela janela fiquei observando ela desaparecer na esquina, morrendo de medo que começasse a revirar os bolsos. Desci desesperado para o porão, abri a porta e vi quatro prateleiras organizadas, repletas de carteiras, cada carteira tinha um papel colado por fora com uma data e uma indicação de lugar. Abri uma, dinheiro e documentos, outra, mesma coisa e outra e outra, uma infinidade de carteiras. Fiquei meio zonzo, olhando para aquelas prateleiras e quase desfaleci ao ouvir um barulho na porta, subi as escadas como pude, deitei-me no sofá, calmamente, e fingi que estava dormindo. Não sei se ela acreditou, olhou-me aflita e disse que tinha voltado por causa da chave, antes de tomar o bonde percebeu que não estava no seu bolso, ‘Você não a viu em algum lugar?’ ‘Chave, que chave?’ Disse passando a mão pela testa como se estivesse a arder e tomei uma aspirina para dar mais ênfase. Ela acendeu um cigarro e ficou me explicando como era a tal chave, eu só balançava a cabeça. ‘Tia, agora estou melhor, vou sair um pouco’. Estava louco para escapar e telefonar para a minha mãe. ‘Eu vou com você’, disse e não me deixava em paz por um segundo até que me dei conta de que podia conversar com minha mãe na frente dela, bastava que eu falasse em português e evitasse as palavras importantes que tivessem alguma semelhança com o inglês. Assim fiz, minha mãe estranhou o tom no começo, mas depois entendeu o que eu queria, ou seja, a encenação. Minha tia não tirava os olhos de mim, eu contava tudo rindo e colocando ‘saudades’ aqui e ali, essa palavra ela conhecia. Minha mãe disse que ia me telefonar mais tarde para me dizer o que fazer. Andamos intranqüilos pelas ruas, a tia, mais estranha que nunca. A chave no meu bolso. Acho que ela sabia. Paramos num café, eu aproveitei e fui ao toalete, peguei a porcaria da chave e joguei no lixo. Voltei mais leve.

Minha mãe telefonou à noite e disse que já tinha ouvido falar sobre a cleptomania da cunhada, nunca dera ouvidos, não imaginava que fosse maníaca a esse ponto. Ela já tinha telefonado para outros parentes e eles estavam me esperando, eu podia ir para lá no dia seguinte. ‘É melhor’. Passei a noite em claro e tia Mônica também, do sofá eu a ouvia remexer as gavetas à procura da cópia da chave, certamente. Fingi dormir. No dia seguinte arrumei as malas e expliquei que ia para a casa dos outros parentes. Ela não tentou me convencer a ficar, acompanhou-me até o ponto e disse que voltasse para tomar chá com ela antes de voltar para o Brasil. Não voltei à casa dela, telefonei dois dias antes do meu retorno e marcamos encontro de despedida em um café. Nunca falamos do porão.

em : Anjos de Prata


Leila Silva

segunda-feira, 12 de setembro de 2005

Na livraria

de Regina Igel


Numa dessas livrarias modernosas, onde se pode sentar como em biblioteca, ler à vontade, comprar ou não comprar, ainda ir até o café e lá uma rubiácea saborear... pois foi numa dessas, em SP, que isto aconteceu. Coisa banal, mas... à falta de outra coisa mais interessante, vou contar.Peguei uma revista importada, daquelas que falam de fofocas reais européias, que custam uns 30 reais, mas como ler é de graça, aproveitei... E me fui sentar num daqueles recantos com cadeiras confortáveis, onde outros já estavam aboletados, cada qual com seu livro ou revista ou jornal. Mais parecia mesmo uma biblioteca do que uma livraria. Mas, pra quê indagar os porquês. Uma boa idéia não se discute. E fui lá me sentar. Olhei tudo na tal revista, vi princesas e príncipes, descansei a cuca das minhas atividades normais e cansativas - principalmente quando exagero, o que faço com relativa freqüência - pois então, depois de descansar o meu fatigado cérebro einsteniano, fechei a revista, fechei os olhos e ali continuei por um bom espaço de tempo. Tempo e espaço, não são coisas de Einstein? Então.. não é à-toa que me canso tanto...Mas, abri os olhos e olhei ao redor. E dei com uma figura masculina ali bem perto. Sentado na cadeira justamente ao meu lado, estava lendo. Interessante exemplar da espécie masculina! Homem de seus 45 ou poucos mais de idade, barba limpa e bem aparada, cabelos meio crespos, castanhos, perfil de nariz afilado. Mãos claras, do tipo que só conhecem o exercício de virar páginas, bater dedinho em celular, levantar copo de vinho... O homem lia, compenetrado. E o mais interessante em toda a figura, para mim, eram seus óculos. Dourados. Aros auricolores e hastes douradas. Não dava para ver a cor das lentes, mas imaginei serem transparentes, claro, ali não fazia sol, embora houvesse uma linda vegetação plantada em vasos. Jardim de inverno, sem dúvida, mais ainda porque o inverno paulistano estava mais vociferante do que nunca, com um frio de fazer gritar. E me fixei nos óculos do cidadão. O homem todo era um quadro digno de ser olhado. Tenho disto, esta apreciação estética pelo ser humano. Não existe pessoa feia pra mim. Todo o mundo tem algo bonito, até mesmo o... bom, não vou dizer o nome do político que acho o mais feio que já vi. (Não é o Valério, mesmo porque até a careca dele tem sua brilhante beleza.)Enfim, para quem está me acompanhando até agora, uma revelação. Gosto de olhar as pessoas e posso ficar muito tempo praticando este esporte, principalmente se meu foco de visão permanecer inalterado. Era o caso do leitor barbudo de óculos dourados. Ele permanecia impassível, parecia que nem sequer virava as páginas. Talvez estivesse dormindo, fingindo que lia, não saberia dizer. Mas estava ali. Um quadro bom pra ser olhado. E, de repente, ele levanta o rosto do livro, gira a cara em minha direção e me diz, à queima-roupa:-- Se você continuar olhando pra mim deste jeito, vou começar a ficar nervoso.Levei um susto daqueles. Parecia que uma estátua tivesse começado a falar. Devo ter ficado supervermelha, que é a minha reação - como me revelam - quando levo susto ou fico sem-graça. Na ocasião, foram as duas coisas. Fiquei sem fala. Minha honesta intenção estética em olhar pro moço tinha sido notada por ele, mas terá visto que era honesta? Logo que me recuperei, lhe disse:-- Estava admirando seus óculos. São diferentes. Sorrindo, ele os retirou e os estendeu para mim, dizendo:-- São da Holanda.-- Ah, parecem mesmo .... (Como é que fui dizer isto? Por acaso conheço outros óculos holandeses, pra fazer tal comparação?) - Peguei-os na mão, ainda quentes do contato com o rosto do seu dono. Eram bonitos. Dourados, pesados, suas lentes eram transparentes, límpidas e grossas. Devolvi-os, perguntando, só para dizer alguma coisa:-- Foram comprados aqui em S.Paulo ou na Holanda?-- Nem aqui nem na Holanda. Em Pernambuco. De um amigo que levou receita do meu médico e comprou-os em Amsterdão. Lá em Pernambuco somos meio doidos por coisas holandesas. -- Ah bom. E têm sua razão - disse eu, filosofando historicamente. - É o legado holandês. Foram quase 25 anos de convivência com os ... neerlandeses.-- Bom, mas eu não estava lá... no século 17! Devo ser descendente de um deles, porque gosto das coisas holandesas. Infelizmente a única vez que cheguei perto de súdito holandês, foi de uma vaca holandesa, lá num sítio, no interior de Pernambuco...A conversa foi andando. O homem escreve, mas não publica (é por isto que o Brasil não vai pra frente -quem escreve, não publica; quem publica, não escreve). E fomos tomar um café, e trocamos cartão, e ficou tudo por isto mesmo. Foi uma boa tarde na livraria-biblioteca-café. Uma tarde esteticamente perfeita. E interessante (para mim, pelo menos). E, por isto, estou contando aqui.

segunda-feira, 5 de setembro de 2005

Persona



“Give me love and, baby, I feel
higher than a kite can fly.”

The Kingston Trio


Às vezes tenho que esforçar-me para lembrar de quem eu era. Tudo aparece confuso e cinza. Tantos clichês nos rodeiam. Quem era eu, quem fui, quem sou? Até aí. Não falo de outras vidas, dear baby, que essa já me basta. O tempo urge, cuidemos. Cuidemos desta que aqui está, efêmera e imperfeita.

Que mais? Ah, teve um ser chamado nietzsche que decretou que Deus está morto. Poupou-me trabalho, mas não me disse quem Eu sou.

A espera sábia pode ser de rara beleza, mas você não acredita nisso. No meu armário tenho várias máscaras que confeccionei em papel maché. Cada uma mais bonita que a outra, dependendo do ângulo. Essa que porto agora é de cor invulgar. Percebeu? Levou anos para estar assim, com esta máscara tenho tantas habilidades, você nem imagina. Sei saltar de um século para o outro, já já lhe mostro. Tenho também uma toda branca, elegante e assustadora, de impossível decifração.

Um personagem simples, como tantos outros, que transita de dia pela cidade e de noite pela via-láctea. Um personagem bêbado de lucidez…Um personagem eu. Para montar, desmonto.
Qual o salário de um poeta? Perguntou-me aquela criança de bochechas vermelhas e olhar acastanhado. Salário vem de sal, meu bebê. E no suor também há sal. Alguns transitam tão à vontade pelo mundo, como se todas as coisas lhes pertencessem. É obsceno. Claro que sei saltar de um século para outro, mas você precisa sempre de todas as provas, vá à biblioteca, às três, e eu lhe mostrarei.

Agora, com licença. Tempo de recolher.

Leila Silva