Num dia de dezembro, pouco antes do natal, eu e um amigo descemos no aeroporto de Banguecoque vindos de Singapura. Ao apresentarmos os nossos passaportes brasileiros o funcionário da imigração disse que devíamos ir ao controle sanitário – ou algo parecido -, indignado o meu amigo perguntou a razão daquilo, o homem, sempre calmo e educado disse que era porque entrávamos com passaporte brasileiro. “Tem certeza?” Insiste o meu amigo. Sempre sereno o funcionário consulta a sua lista de países que devem passar pelo tal controle, “Sim”, reafirma, já meio constrangido, “é um país tropical, é preciso”, continua ele. “Mas nem estamos chegando do Brasil”. Tenta mais uma vez o meu amigo porque já era tarde e alguém nos esperava na chegada. Enfim, não havia nada a fazer senão nos apresentarmos a este controle. Fomos com o sentimento de sermos os seres mais piolhentos do planeta e como se a vacina ainda não tivesse sido descoberta no Brasil...O que fariam conosco? Nos obrigariam a tomar um banho com detergente, nos examinariam, raspariam os nossos cabelos? Agora rindo, apesar da preocupação com o tempo, meu amigo ainda lançou “Eu queria era só ver se aquela tal de rainha das padarias chegasse aqui e tivesse que passar por isso. Bom, ela nunca viria a um lugar desses.” Rainha das padarias? “Sim, uma dessas nouveau-riche do Brasil, vi numa revista.”
Não era tão óbvio assim esse tal lugar e meus sapatos novos me incomodavam. Finalmente encontramos um balcão com uns papeizinhos que deviam ser preenchidos com x aqui e ali, nada demais, não havia médico, não havia ninguém para nos informar. E, se fosse o caso, podíamos mentir a vontade.
Singh, um rapaz tranquilo, gordinho e sorridente nos apresentou Banguecoque, a sua família, a sua cadelinha. Quando nos conduzia à casa de sua família, explicou-nos, pedindo desculpas por isso, que não devíamos tocar, abraçar ou beijar os seus...Ele mesmo não se importava em cumprimentar do modo ocidental porque estava acostumado, mas eles, que não viviam exatamente na capital, iam ficar constrangidos, “I am sorry!”. Tão delicado este rapaz que me inquiria sobre o cristianismo e falava do seu budismo, que insistia em pagar as contas mesmo tendo, sem dúvida, salário mais baixo que os nossos. A mãe e as irmãs de Singh não falavam uma só palavra de inglês, sorriam muito, de um jeito terno e, com as duas mãos juntas na frente do peito, abaixando a cabeça nos cumprimentaram. Imitamos. O cachorrinho veio e saltou em todos nós como fazem os cachorros em qualquer lugar do planeta. Nos ofereceram uma espécie de bolo, uma bebida de côco, e quando partimos levávamos tanta comida e bebida, por insistência da mãe, que não pudemos levar tudo para casa, tivemos que deixar um pouco no hotel.
Naquele vinte e quatro de dezembro Singh, para nos acompanhar – imaginando decerto que isso fosse importante para nós – festejou pela primeira vez um natal, ele mesmo escolheu o hotel onde muitos ocidentais que ali viviam iam com a família comemorar a data. Já nem me lembro que histórias Singh teria contado, só sei que bebi um pouco e que ria até quase às lágrimas. E essa era a primeira vez que eu via aquele rapaz, infelizmente foi também a última.
Banguecoque para mim é Singh e sua família sorridente, meninas magras e serenas, um príncipe bonito estampado em fotos enormes em muitos lugares, templos silenciosos, um dourado sem fim...mas é, sobretudo, uma mulher sem olhos, encostada a um muro. O que fazia ali, pedia, vendia flores ou simplesmente esperava? Nada havia no lugar destinado aos olhos, nem cílios, nem sobrancelhas, nem buraco nem nada, a parte era lisa, coberta por pele, como se a natureza tivesse esquecido de construir aquela área, assim como, às vezes dá um dedo a mais a alguns. Não pude olhar muito para a mulher sem olhos, mesmo sabendo que ela não podia me ver e nem pensei em tirar uma foto, apenas registrei essa imagem de uma rua de Banguecoque, uma estranheza que não era exatamente cultural. Nem pude ver se ela sorria como os outros, parece que não.
Leila Silva
Não era tão óbvio assim esse tal lugar e meus sapatos novos me incomodavam. Finalmente encontramos um balcão com uns papeizinhos que deviam ser preenchidos com x aqui e ali, nada demais, não havia médico, não havia ninguém para nos informar. E, se fosse o caso, podíamos mentir a vontade.
Singh, um rapaz tranquilo, gordinho e sorridente nos apresentou Banguecoque, a sua família, a sua cadelinha. Quando nos conduzia à casa de sua família, explicou-nos, pedindo desculpas por isso, que não devíamos tocar, abraçar ou beijar os seus...Ele mesmo não se importava em cumprimentar do modo ocidental porque estava acostumado, mas eles, que não viviam exatamente na capital, iam ficar constrangidos, “I am sorry!”. Tão delicado este rapaz que me inquiria sobre o cristianismo e falava do seu budismo, que insistia em pagar as contas mesmo tendo, sem dúvida, salário mais baixo que os nossos. A mãe e as irmãs de Singh não falavam uma só palavra de inglês, sorriam muito, de um jeito terno e, com as duas mãos juntas na frente do peito, abaixando a cabeça nos cumprimentaram. Imitamos. O cachorrinho veio e saltou em todos nós como fazem os cachorros em qualquer lugar do planeta. Nos ofereceram uma espécie de bolo, uma bebida de côco, e quando partimos levávamos tanta comida e bebida, por insistência da mãe, que não pudemos levar tudo para casa, tivemos que deixar um pouco no hotel.
Naquele vinte e quatro de dezembro Singh, para nos acompanhar – imaginando decerto que isso fosse importante para nós – festejou pela primeira vez um natal, ele mesmo escolheu o hotel onde muitos ocidentais que ali viviam iam com a família comemorar a data. Já nem me lembro que histórias Singh teria contado, só sei que bebi um pouco e que ria até quase às lágrimas. E essa era a primeira vez que eu via aquele rapaz, infelizmente foi também a última.
Banguecoque para mim é Singh e sua família sorridente, meninas magras e serenas, um príncipe bonito estampado em fotos enormes em muitos lugares, templos silenciosos, um dourado sem fim...mas é, sobretudo, uma mulher sem olhos, encostada a um muro. O que fazia ali, pedia, vendia flores ou simplesmente esperava? Nada havia no lugar destinado aos olhos, nem cílios, nem sobrancelhas, nem buraco nem nada, a parte era lisa, coberta por pele, como se a natureza tivesse esquecido de construir aquela área, assim como, às vezes dá um dedo a mais a alguns. Não pude olhar muito para a mulher sem olhos, mesmo sabendo que ela não podia me ver e nem pensei em tirar uma foto, apenas registrei essa imagem de uma rua de Banguecoque, uma estranheza que não era exatamente cultural. Nem pude ver se ela sorria como os outros, parece que não.
Leila Silva