[Cadernos da América do Norte]
Óleo sobre tela
....e como era aquele tempo em que as pessoas não tinham fotografias amareladas para ver ? aquela chinesa ali, tão grávida, que parou para descansar [o marido americano segura a bolsa enquanto isso. bolsa de mulher] tem em casa uma foto antiga da mãe na China.
da sua boca sairá uma filha que ela quererá perfeita e, quem sabe, cristã. mas aquele outro casal que passa, ele chinês, ela chinesa, observa sem pudor a que ali descansa o seu ventre já quase maduro e o marido que segura ternamente a bolsa feminina. A bolsa outra, dia desses, rebentará e uma menina muito linda e mista verá a luz. mas o olhar do outro casal lançou uma sombra na boca da grávida? a boca mensageira, corrosiva ou libertária, a boca que recriará uma avó chinesa, uma língua chinesa e os parques da China tão mais vastos e verdes que este americano e plástico. a graça imperfeita da China parecerá tão distante e a foto da avó desdentada e camponesa será uma irrealidade. a mãe entoará berceuses em chinês. deve existir berceuses em chinês. sim.
Leila Silva
leilaterlinc@yahoo.com.br
terça-feira, 24 de agosto de 2004
sexta-feira, 13 de agosto de 2004
A velhinha do quarto andar
[Série vizinhos]
A velhinha do quarto andar tem 80 e tantos anos, o marido, pouco mais velho que ela, foi-se embora com a mulher que arrumava a casa deles. A velhinha, desesperada, batia todos os dias na porta da Madame de Vish (no primeiro andar) pedindo ajuda, conselhos…Não sabe fazer nada sozinha. É triste vê-la arrastando os grandes sacos de lixo até o elevador. Madame de Vish, esta nobre e faladeira senhora – a ela devo pelo menos 80 por cento das estórias dos vizinhos – ajuda sempre.
Pois o velhinho, atentado pela faxineira(sempre segundo madame de Vish ou a Luxemburguesa que também é boa de estórias) estava assediando a esposa para que vendesse o apartamento deles aqui.
Outro dia P. encontrou-se com a velhinha tentando atravessar a rua para ir ao cabeleireiro. Ajudou-a na travessia, acompanhou-a até o cabeleireiro e ela comentou ‘Não sei porquê, os gays são sempre os mais gentis’. P. não é gay, mas não tem importância….
Agora soube que o velhinho morreu….passou muito pouco tempo com a amante e nem tiveram tempo de convencer a velhinha a vender o apartamento.
Leila Silva
[Série vizinhos]
A velhinha do quarto andar tem 80 e tantos anos, o marido, pouco mais velho que ela, foi-se embora com a mulher que arrumava a casa deles. A velhinha, desesperada, batia todos os dias na porta da Madame de Vish (no primeiro andar) pedindo ajuda, conselhos…Não sabe fazer nada sozinha. É triste vê-la arrastando os grandes sacos de lixo até o elevador. Madame de Vish, esta nobre e faladeira senhora – a ela devo pelo menos 80 por cento das estórias dos vizinhos – ajuda sempre.
Pois o velhinho, atentado pela faxineira(sempre segundo madame de Vish ou a Luxemburguesa que também é boa de estórias) estava assediando a esposa para que vendesse o apartamento deles aqui.
Outro dia P. encontrou-se com a velhinha tentando atravessar a rua para ir ao cabeleireiro. Ajudou-a na travessia, acompanhou-a até o cabeleireiro e ela comentou ‘Não sei porquê, os gays são sempre os mais gentis’. P. não é gay, mas não tem importância….
Agora soube que o velhinho morreu….passou muito pouco tempo com a amante e nem tiveram tempo de convencer a velhinha a vender o apartamento.
Leila Silva
quarta-feira, 11 de agosto de 2004
Airama
[Não faz parte, necessariamente, dos cadernos da Bélgica. Por falta de tempo de contar os casos daqui, saio da minha proposta e deixo esse conto curto.]
Airama
“ A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra”
Matsuo Bashô
Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho…chaninho…chaninho…sem atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.
Maria não me quer mais. Diz coisas descabidas, cospe no passado, rasga as fotos.
Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.
Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta por cento daquilo.
Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez as malas e coloriu o meu armário.
Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´
Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.
O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.
Um dia Maria acordou e anunciou que o perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n. 5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas Maria não queria saber de nada.
Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali….`vai mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira carregada.
Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.
O cão ainda está aqui, lavei-o, alimentei-o, ele engordou…Olha para a televisão com a boca aberta e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação natural, dá conselhos de beleza….Quanto mais revela, mais esconde. Maria, que era bonita como uma laranjeira. ´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra”
Matsuo Bashô
Um cão passa na rua. Um pobre cão magro e sem dono. Chamo-o chaninho…chaninho…chaninho…sem atentar que chaninho é chamamento para gato. Ainda assim ele vem. De tão pobre já deve ter perdido a dignidade canina.
Maria não me quer mais. Diz coisas descabidas, cospe no passado, rasga as fotos.
Dou um osso ao cão e ele abana o rabo feliz. Decerto.
Maria, agora, era pura matemática. Cinquenta por cento disso, cinquenta por cento daquilo.
Um dia colhi flores no campo e enfeitei os seus cabelos. Maria sorriu, desfez as malas e coloriu o meu armário.
Maria disse que já era ´Foda-se com as flores.´
Foda-se, tem cabimento? Não respeita mais nada.
O osso é muito pouco para um cão tão faminto, dou-lhe umas salsichas e ele agradece com o rabinho.
Um dia Maria acordou e anunciou que o perfume das flores silvestres não lhe bastava mais. Queria channel n. 5. Eu disse ´Maria, destroem a floresta e os homens da floresta para fabricar cheiro tão desnecessário.` Maria me olhou com raiva e eu ainda tentei ´O pau-rosa, Maria, não haverá mais pau-rosa.` Mas Maria não queria saber de nada.
Maria era só precisão ´Assine aqui, aqui e ali….`vai mostrando as linhas com o seu dedinho fino, era mais linda que uma laranjeira carregada.
Maria venceu na vida. Vejo a distante e artificial. Não se chama mais Maria, chama-se Airama e seu sorriso preenche a tela. Não tivesse ela telefonado para dizer seu novo nome e o horário do programa, eu não a teria reconhecido. Nem a voz era a mesma, nem os gestos, as pausas eram calculadas, os ângulos estudados, as frases bem articuladas e sem sentido. Maria venceu.
O cão ainda está aqui, lavei-o, alimentei-o, ele engordou…Olha para a televisão com a boca aberta e a língua de fora e faz ah! Ah! Maria fala das estradas que galgara para a fama, do casamento com um escritor misantropo, da sua alimentação natural, dá conselhos de beleza….Quanto mais revela, mais esconde. Maria, que era bonita como uma laranjeira. ´Foda-se com as flores.` Disse Maria e bateu a porta. Aqui fiquei com o cão que agora tem um nome, Orfeu. Orfeu faz ah! Ah! E eu passo a mão na sua cabeça. ´Já vamos, Orfeu, já vamos`.
Leila Silva
sábado, 7 de agosto de 2004
quinta-feira, 5 de agosto de 2004
A dama de Luxemburgo
[Série vizinhos]
Vivo num prédio branco de sete andares com um desses elevadores antigos que a gente vê em filmes franceses (normalmente); a gente fecha uma porta, depois fecha a outra, depois aperta o botão e umas vezes ele funciona de imediato, outras não. Um charme! Quando não funciona é preciso recomeçar a operação, isto é, abrir uma porta, depois a outra, depois fechá-las ….PLAC PLAC…e apertar de novo o botão. Eu, por motivos óbvios , prefiro as escadas. Mas, vivo no segundo andar, quem vive no sétimo prefere brigar com as portas. Quando se sai do elevador, não se pode esquecer nunca – sob risco de linchamento – de fechar ambas as portas, do contrário, o elevador ficará lá paradão. Os velhinhos, com razão, ficam super irritados, quando escuto os gritos ‘ascenceeeeuuur!’ corro lá, como uma boa samaritana, e resgato o elevador para eles.
No sétimo andar vive uma senhora luxemburguesa de mais de setenta anos. Todos os dias, pela manhã e pela tarde, verão ou inverno, ela sai com a cachorrinha. Muitas vezes nos encontramos no hall da entrada e, nesse caso, é melhor preparar as orelhas porque ela adora uma prosa. Felizmente, na maioria das vezes, o assunto é interessante, ou melhor, ela tem um tom interessante e é irresistivelmente irônica…A verdade é que eu adoro ouvir estórias. Um dia eu desci com o propósito de ir ao banco, encontrei-a com a cachorrinha que se chama ficelle, tanto falou a Madame luxemburguesa que, quando cheguei ao banco as portas já estavam fechadas.
Mas vejam que a sua estória era bem mais interessante que a operação que eu devia fazer no banco. Disse ‘je suis une fille naturelle’ e explicou, desnecessariamente, o que significava: ela desconhecia o pai. Quando ela estava com uns quatorze anos a sua mãe casou-se com um homem jovem e bonito, “Le plus beau du village”, disse. A juventude e a beleza do rapaz obcecaram a tal ponto a mãe que ela passou a maltratar a filha por ciúmes. Vou fazer a estória mais curta para não perder o leitor, o caso é que os avós tiveram que vir resgatá-la do inferno. Entretanto, acrescentou a luxemburguesa, era tudo na cabeça da mãe porque o rapaz era um gentleman e nunca encostou um dedo nela. Vivia bem com os avós até que os nazistas invadiram luxemburgo (que era, como a Bélgica, país neutro, mas isso era apenas um detalhe para Hitler) e os vizinhos, vendo a em casa, disseram aos avós “É preciso arrumar um trabalho para essa menina porque os alemães estão levando todos os ociosos.” Assim, por força das circunstâncias, arrumaram-lhe um lugar no hospital e ela tornou-se enfermeira até poucos dias atrás quando se aposentou.
Ao lado do apartamento da luxemburguesa vive um chileno, e foi por causa dele que ele começou a falar-me da infância infeliz, da invasão alemã, da mãe ciumenta….Isto é, o chileno é odiado no prédio e mais ainda por quem vive no mesmo andar. Eu tentei fazer uma fraca defesa do chileno dizendo que talvez ela tivesse sido torturado por Pinochet e bla bla bla….Ela disse, muito firmemente, que isso não justifica as grosserias dele e narrou a própria desgraça com requinte de detalhes. Descreveu até os riachos de Luxemburgo mas tenho certeza de que ninguém está disposto a perder o encontro no banco e, tenho que confessar, ela narra muito, mas muito melhor que eu.
Leila Silva
Vivo num prédio branco de sete andares com um desses elevadores antigos que a gente vê em filmes franceses (normalmente); a gente fecha uma porta, depois fecha a outra, depois aperta o botão e umas vezes ele funciona de imediato, outras não. Um charme! Quando não funciona é preciso recomeçar a operação, isto é, abrir uma porta, depois a outra, depois fechá-las ….PLAC PLAC…e apertar de novo o botão. Eu, por motivos óbvios , prefiro as escadas. Mas, vivo no segundo andar, quem vive no sétimo prefere brigar com as portas. Quando se sai do elevador, não se pode esquecer nunca – sob risco de linchamento – de fechar ambas as portas, do contrário, o elevador ficará lá paradão. Os velhinhos, com razão, ficam super irritados, quando escuto os gritos ‘ascenceeeeuuur!’ corro lá, como uma boa samaritana, e resgato o elevador para eles.
No sétimo andar vive uma senhora luxemburguesa de mais de setenta anos. Todos os dias, pela manhã e pela tarde, verão ou inverno, ela sai com a cachorrinha. Muitas vezes nos encontramos no hall da entrada e, nesse caso, é melhor preparar as orelhas porque ela adora uma prosa. Felizmente, na maioria das vezes, o assunto é interessante, ou melhor, ela tem um tom interessante e é irresistivelmente irônica…A verdade é que eu adoro ouvir estórias. Um dia eu desci com o propósito de ir ao banco, encontrei-a com a cachorrinha que se chama ficelle, tanto falou a Madame luxemburguesa que, quando cheguei ao banco as portas já estavam fechadas.
Mas vejam que a sua estória era bem mais interessante que a operação que eu devia fazer no banco. Disse ‘je suis une fille naturelle’ e explicou, desnecessariamente, o que significava: ela desconhecia o pai. Quando ela estava com uns quatorze anos a sua mãe casou-se com um homem jovem e bonito, “Le plus beau du village”, disse. A juventude e a beleza do rapaz obcecaram a tal ponto a mãe que ela passou a maltratar a filha por ciúmes. Vou fazer a estória mais curta para não perder o leitor, o caso é que os avós tiveram que vir resgatá-la do inferno. Entretanto, acrescentou a luxemburguesa, era tudo na cabeça da mãe porque o rapaz era um gentleman e nunca encostou um dedo nela. Vivia bem com os avós até que os nazistas invadiram luxemburgo (que era, como a Bélgica, país neutro, mas isso era apenas um detalhe para Hitler) e os vizinhos, vendo a em casa, disseram aos avós “É preciso arrumar um trabalho para essa menina porque os alemães estão levando todos os ociosos.” Assim, por força das circunstâncias, arrumaram-lhe um lugar no hospital e ela tornou-se enfermeira até poucos dias atrás quando se aposentou.
Ao lado do apartamento da luxemburguesa vive um chileno, e foi por causa dele que ele começou a falar-me da infância infeliz, da invasão alemã, da mãe ciumenta….Isto é, o chileno é odiado no prédio e mais ainda por quem vive no mesmo andar. Eu tentei fazer uma fraca defesa do chileno dizendo que talvez ela tivesse sido torturado por Pinochet e bla bla bla….Ela disse, muito firmemente, que isso não justifica as grosserias dele e narrou a própria desgraça com requinte de detalhes. Descreveu até os riachos de Luxemburgo mas tenho certeza de que ninguém está disposto a perder o encontro no banco e, tenho que confessar, ela narra muito, mas muito melhor que eu.
Leila Silva
segunda-feira, 2 de agosto de 2004
Ser
Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno relapso e já não sou mais.
Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.
Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas e a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a dona do barraco vem nos encher o saco e nos dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.
Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?
Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar dizendo que prostituta é atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.
……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.
Leila Silva
PS: O O cenário não é a Bélgica mas, como ando sem tempo de rever os outros, decidi postar esse que deveria estar em um Cadernos de Londres.
Eu sou. Alardear isso parece sensacionalismo nos nossos dias, mas asseguro-lhes que no meu caso torna-se necessário. Ser não é fácil para ninguém, eu sei, mas quando se é uma atriz, uma farsante, uma profissional que ganha a vida vendendo o corpo, o ser toma outra dimensão e exige cuidados extremos, muita disciplina. Um pequeno relapso e já não sou mais.
Poderia começar por dizer simplesmente que meu nome é Clara, mas isso não alteraria nada e nem é verdade. Então eu digo que sou uma prostituta e vivo na cidade de Londres. Duas coisas importantes e reais.
Tem dias que saio de casa com a bolsa cheia de papéis, entro numa dessas românticas cabines telefônicas e prego ali os anúncios com uma foto que mostra, felizmente, mais as partes irreconhecíveis do meu corpo, pode-se ler também uma pequena descrição dos serviços e um número de telefone. No mais, eu e as outras meninas passamos o nosso tempo a esperar os telefonemas e a campainha, jogamos conversa fora enquanto isso, tomamos café e rimos. É preciso rir. E, claro, quando a campainha toca é sinal de que teremos trabalho. Então nos alinhamos trajadas a rigor, cada uma apresenta a sua melhor performance, umas abrem a boca, passam a língua nos lábios vermelhos, outras olham para baixo e fingem-se de tímidas, a idiota da Cindy (idiota até no nome que escolheu) sempre solta um ‘hello!’ que ela pensa que é sensual. Enfim, cada uma faz o que pode para chamar a atenção e, se não fizer, a dona do barraco vem nos encher o saco e nos dar lições de procedimento que devem ser evitadas a todo custo porque ela é patética. Aí vem um medo de envelhecer e pensar que pode ser esse mesmo destino que nos espera. Penso nisso e me empenho, melhor ser ridícula agora do que patética mais tarde.
Como percebem, é fácil se perder, um dia eu posso olhar no espelho e pensar que eu sou outra, um dia eu posso acordar com um cliente e imaginar que ele é meu marido, ou, o que seria ainda pior, se um dia eu tiver um marido e acordar acreditando que ele é meu cliente?
Às vezes a gente fica de saco cheio dos homens, por isso beijei uma das meninas na boca. Eu beijei e ela riu. Depois, para mudar de assunto, ela disse que isso de ficar dizendo que prostituta é atriz era muito banal, todo mundo finge, todos os profissionais fingem, as esposas fingem, os maridos fingem, ninguém suporta ser vinte e quatro horas por dia. Seria uma insensatez. Perguntei-lhe se ela conseguia ser enquanto eu a beijava e ela disse que eu parasse de bobagem, que já estava cansada da minha conversa de doida. Ora, eu que faço tanto esforço para manter o equilíbrio é que sou chamada de doida.
……a campainha está tocando, lá vai a manada para a fila, tenho que ir também ocupar o meu posto. Respirar fundo, sorrir.
Leila Silva
PS: O O cenário não é a Bélgica mas, como ando sem tempo de rever os outros, decidi postar esse que deveria estar em um Cadernos de Londres.
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