domingo, 25 de novembro de 2007

Carta de Caio Fernando Abreu para Hilda Hilst


[Eu não sei mais onde encontrei esta carta, estava dando uma vasculhada nos meus arquivos e me deparei com ela. É muito interessante a impressão que Clarice deixou no escritor. Ainda que ele tenha exagerado, é remarcável. Acho que já coloquei aqui o link para a entrevista com ela no youtube. Nesta entrevista já dá para sentir um pouco do que C. F. Abreu fala nesta carta.]

......

29/12/1970

Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde. Um grande beijo do teu

Caio.

(Do livro de cartas dele organizado por Italo Morriconi)

14 comentários:

  1. Acho que C.F.A. definiu muito bem Clarice no trecho abaixo:

    "Uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo"

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Droga! Meu comentário sumiu. Eu falava do post anterior e lembrava de um movimento semelhante que houve aqui no Brasil por dois asnos consecutivos e depois sumiu. E obrigada pela referência elogiosa lá no (http://hebdomadario.wordpress.com/

    ResponderExcluir
  4. Não sou asno mas sou anta - quando é que vou aprender a digitar direito?

    ResponderExcluir
  5. Anônimo6:30 PM

    Nossa ele descreveu muito bem a existência de Clarice, que sempre será um mistério

    ResponderExcluir
  6. Uauuuuuuuuuuuuuuu que emoção.
    No dia que eu encontrei o Raduan pela primeira vez, falei mto, das nove da noite até uma hora, aí passei a noite em claro de tanta ansiedade.
    Clarice era uma presença, com certeza, impressionante.
    bj
    adorei ler.

    ResponderExcluir
  7. ai saiu assinado Diz, que é meu sobrenome,
    Laura

    ResponderExcluir
  8. Anônimo12:01 PM

    Caio F.Abreu foi passageiro do meu táxi, tu deves saber.
    Há braços!!
    Mauro Castro

    ResponderExcluir
  9. Eu, que sou um hilstiano convicto, fico aqui pensando como a Hilda encarava a grandeza de Clarice.

    Muito bom ler essa carta...

    abraços

    ResponderExcluir
  10. Anônimo4:03 AM

    Gosto de Clarice. Eu não teria coragem de me expor tanto quanto ela em suas crônicas. Há quem a critique, não como escritora, não como pessoa, mas pelo fato de ser bissexual. Incrível, né?
    Manoel Carlos

    ResponderExcluir
  11. CLARICE É ESPETACULAR! ELA E CAIO CONTINUAM TRADUZINDO MINHAS EMOÇÕES E SENTIMENTOS TODOS OS DIAS... LINDO, LINDO!

    ResponderExcluir