domingo, 21 de novembro de 2004

Cadernos do Oriente

[Conto de Wu Jun (459-520), China. Traduzido a partir da Edição espanhola: Cuentos Fantásticos Chinos, Seix Barral.]

Na prefeitura de Yangxian, deu-se o caso de um homem chamado Xu que atravessava as montanhas levando nas costas uma gaiola de gansos quando encontrou um estudante no caminho. O rapaz estava caído e perguntou-lhe se podia ser carregado na gaiola porque tinha os pés machucados. Xu não o levou a sério e ainda ria quando o rapaz entrou na jaula sem diminuir de tamanho e sem que a jaula aumentasse de volume, ajeitou-se entre dois gansos sem causar-lhes nenhum incômodo ou medo.Xu voltou a carregar a gaiola pois, apesar da sobrecarga, não sentiu que ela pesava mais. Percorreram um trecho até chegarem a uma árvore baixa e ali Xu decidiu parar para descansar.
O estudante saiu da jaula e disse:
- Se não houver nenhum inconveniente, gostaria de preparar para nós uma comida simples.
- Claro! Respondeu, encantado, o viajante.
O estudante sacou, então, da sua boca uma grande caixa de cobre e de dentro da caixa foi tirando um prato depois do outro, já preparados. Um infindável e delicioso banquete.
- Queria dizer-lhe – disse o estudante depois de uns tantos copos de licor de arroz – que a verdade é que não viajo só, trago comigo uma mulher escondida e gostaria de convidá-la a sentar-se conosco, se isto lhe convier.
- Claro! Disse, mais uma vez, Xu.
O rapaz tirou da boca uma moça, vestida com uma elegância extraordinária e mais bela que todas as mulheres. Continuaram a comer e a beber até que o estudante, sentindo-se cansado e embriagado, deitou-se num canto e dormiu. A mulher aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que eu seja sua mulher, detesto este homem. Por isso, não vou só, trago comigo um homem escondido. Agora que meu marido está dormindo pesado, gostaria de vê-lo. Não dirá nada a meu esposo, não é mesmo?
- Claro que não. Respondeu Xu.
Ela tirou, então, da sua boca, um homem de uns vinte e três ou vinte e quatro anos, inteligente e amável, que esteve conversando animadamente com Xu, até que o estudante pareceu despertar. A moça tirou rapidamente um biombo da sua boca e atrás dele escondeu o amante. Ao mesmo tempo foi chamada pelo marido que, langoroso, puxou-a para deitar-se ao seu lado. O amante aproveitou para dizer a Xu:
- Queria dizer-lhe que, ainda que seja uma mulher de bom coração, o meu amor não é só para ela, por isso não vou só, mas trago comigo uma mulher escondida. Agora que a outra está dormindo, gostaria de vê-la, você guardará segredo?
- Claro! Respondeu Xu.
Tirou da boca uma mulher de uns vinte anos de idade e continuaram bebendo, comendo e conversando os três até que ouviram ruídos vindo do lado onde estava o outro casal. Rapidamente o rapaz engoliu a mulher. No mesmo instante, a esposa do estudante saiu de detrás do biombo e disse:
- Meu marido está a ponto de acordar. Engoliu rapidamente o amante e ficou a conversar com Xu.
O marido acordou, finalmente, e disse:
- Acabei por dormir muitas horas. Desculpe tê-lo deixado só, você deve ter se aborrecido bastante. Bom, já está quase noite, teremos que nos despedir.
Colocou na boca a mulher e também todos os pratos, talheres, vasilhas. Só não engoliu uma grande bandeja de cobre:
- Como não tenho nada de valor a oferecer-lhe, deixo-lhe isto como lembrança do nosso encontro. Disse o estudante a Xu.

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Muito mais tarde, exatamente no ano 376, Xu foi elevado ao posto de bibliotecário imperial e teve ocasião de mostrar a bandeja ao vice-ministro Zhang. Este, examinando o objeto, descobriu uma inscrição que indicava ter sido ele fundido em 58, durante a dinastia Han.

Um comentário:

Allan Robert P. J. disse...

Ditado baiano: quem tem boca diz o que quer.
Ciao