quinta-feira, 31 de maio de 2007

A Engrenagem

[Um conto antiguíííssimo para cobrir a minha falta de tempo. Logo volto.... Será?]

A Engrenagem

Cleide abriu os olhos, esticou os braços lentamente, jogou o lençol para o lado e, com os pés, procurou as chinelas havaianas que, àquela hora, já deveriam estar esperando pelo gesto. Andou a passos de tartaruga até o espelho sujo do banheiro e não ficou contente com o que viu. Por que teria que envelhecer? De que adiantava nascer se, com menos de quarenta anos, já começava a ficar velha? Merda. Grita pela filha e descarrega o desgosto. ‘Porque esse banheiro tá sujo desse jeito? O que é que você esteve fazendo que ainda não limpou isso? Você parece uma lesma. Onde estão os seus irmãos?’ Diabo de vida. Nascer, procriar, criar rugas. Marido? Era bom nem falar. Esse, nem para enfeite servia. E o médico vem lhe dizer que a razão de tanta dor de cabeça é que ela não está contente com a vida que leva. ‘E mesmo, doutor? O que mais o senhor tem para me contar?’ Então era para isso que a gente pagava médico, para nos dizer o óbvio? À puta que o pariu. Para isso passam cinco, seis, sete, sabe-se lá quantos anos na universidade? Não deixou por menos, disse-lhe poucas e boas.


Lavou o rosto, espalhou cuidadosamente o creme na pele, debaixo para cima como prescrevia a revista feminina. Olhou para os cabelos ralos - mas isso não era efeito dos anos, sempre foram assim- escovou-os mas de nada adiantava, não melhorava o efeito. Na raiz estavam completamente pretos e nas pontas, loiros. Um horror. Tocou delicadamente os cabelos e, num repente, tomou uma decisão corajosa, ou melhor, não tomou uma decisão, fez uma promessa, raparia a cabeça para que deus a ajudasse a conservar o que ainda lhe restava de juventude. Não ia ser fácil, mas faria isso. Seria alvo de atenção durante um mês pelo menos, mas não tinha importância, já estava acostumada a isso. A cidade era pequena demais, não tinham o que fazer, que falassem dela. ‘Kátia, o café tá pronto?’ Perguntou à filha. Tomou o café e foi dizendo que queria frango para o almoço e que a partir daquele momento não se comeria mais carne vermelha em casa pois lera que isso pode contribuir para o envelhecimento da pele. ‘Quando você quiser carne de porco ou vaca, vai na casa da sua avó. Explique isso aos seus irmãos.’ Kátia pensou em perguntar ‘ E o papai?’, mas não teve coragem. Cleide terminou o café, levantou-se, trocou de roupa, passou o batom e disse à filha. ‘Kátia, eu vou sair. Vai lá fora e vê se a jabiraca da Rita já tá na rua. Eu não tô com vontade de ver a cara dela hoje.’ Rita era a vizinha que no dia anterior viera lhe dizer que surpreendera Fernando, o seu filho de nove anos e Leandro, o filho de Cleide de dez anos atrás da casa experimentando ‘prazeres proibidos’. Palavras da vizinha. Explicara nervosamente o que vira, e dissera que seu filho seria severamente punido. Cleide nem respondeu, e nem precisava, todos a conheciam e sabiam que o filho podia esperar pelo pior. Foi até onde estava Leandro, no fundo do quintal, já esperando pela hora fatal. Ainda assim, quando viu a mãe se aproximar, tentou resistir. Ela gritou: ‘ Vem aqui agora ou vai ser pior...eu vou te arrancar o couro, seu moleque safado. Quanto mais você esperar mais vai aumentar a minha raiva e a sua vergonha porque eu vou gritar tanto que todo mundo vai ouvir. Eu não quero saber de viado nessa casa, ouviu? vem cá, agora.’ Além de arrancar-lhe o couro, como prometido, Cleide aplicou uma boa dose de pimenta nos órgãos genitais do pobre Leandro. ‘É de pequenino que se torce o pepino.’ Costumava dizer. Queria dar-lhe uma lição exemplar para que depois não dissessem que saira errado por sua culpa.


Kátia viera dizer que não vira a vizinha na rua. Cleide montou em sua velha bicicleta e percebeu que o sol já dominava cada canto descoberto. ‘Porcaria, tão cedo e já esse calor. Esse sol não é bom para a pele.’ Pensou. Quando chegou na esquina avistou Rita e mais três mulheres a conversar animadamente. ‘ Oi Cleide!’ Disseram em uníssono abanando as mãos. Cleide respondeu ao cumprimento sem sorrir. ‘Saco, ô mulherada à toa.’ Pedalou mais rápido e parou em frente à barbearia do Seu Zeca. ‘Oi, seu Zeca, tudo bem?’ ‘Tudo bem, Cleide, e a sua mãe, como vai?’ Nem perguntou pelo pai pois sabia que ele e a filha não se falavam há anos. ‘Vai bem, seu Zeca, eu vim aqui para o senhor rapar a minha cabeça.’ Disse-lhe sem mais. ‘Quê?’ Perguntou o pobre homem assustado. ‘Rapar a minha cabeça, seu Zeca. O senhor não é barbeiro? Pois então, por isso vim aqui. Quero no zero.’ Com os olhos assustados, seu Zeca lhe respondeu que aquilo ele não podia fazer. ‘Porque não pode? O senhor é barbeiro ou não é?’ Perguntou irritada. ‘Eu sou, minha filha, mas nunca rapei cabeça de mulher. Não posso, aqui é só pra homem.’ Afirmou com convicção. ‘Pois então, até logo, eu vou noutra freguesia.’ Pegou a bicicleta e saiu pedalando com raiva. Parou em frente à outra barbearia. ‘Seu Tito!’ Gritou da porta pois não viu ninguém no salao. O barbeiro gritou do bar, do outro lado da rua. ‘ Cleide, eu tô aqui. O que é que foi?’ Perguntou ele de longe. Sem coragem de explicar ao que viera assim na frente de todo mundo, ela fez, com a mao, um sinal para que ele se aproximasse. Ele atravessou a rua lentamente com um cigarro na boca. ‘Seu Tito, eu vim aqui para o senhor rapar a minha cabeça.’ ‘A sua?’ Perguntou atrapalhado o seu Tito. ‘A minha mesmo, seu Tito, quem mais o senhor tá vendo aqui?.’ ‘Ah, minha filha, a sua eu não posso.’ Diz ele. ‘E não pode porque?’ Insistiu ela. ‘É que... seu cabelo tá muito comprido, não dá para rapar.’ Tentou argumentar o barbeiro. ‘Ah é? Então espera aqui um pouquinho.’ Cleide voltou a sua casa e, diante do olhar assustado da filha, pegou a tesoura e cortou os cabelos. ‘Mãe, porque você está fazendo isso?’ Perguntou, timidamente, Kátia. ‘Não é da sua conta.’ Foi o que recebeu como resposta. Apresentou-se assim, com o cabelo tosado na frente do barbeiro que não encontrou outra desculpa. Vai rapando e reclamando. ‘Porque eu? Porque você não foi noutro barbeiro?’ ‘Eu fui mas o seu Zeca foi mais esperto que o senhor e disse que não cortava cabelo de mulher.’ Disse ela sorrindo. ‘É, foi mesmo, mas eu sou amigo do seu pai.’ ‘ Mas que medo todo mundo tem do meu pai, credo.’ Provocou Cleide. ‘ Não é medo não, minha filha, é respeito. Pelo menos não conta pra ele que fui que rapei a sua cabeça.’ ‘Eu não vou dizer, seu Tito, porque o senhor sabe que eu não converso com ele mas até parece que o senhor não mora nessa cidade. Na hora em que eu subir ali na minha bicicleta ele já vai estar sabendo’. ‘E verdade,’ concordou resignado ‘espero que ele não fique com raiva de mim’ ‘Não vai ficar não, seu Tito, ele me conhece.’Consolou ela. ‘Pronto, ai está, carequinha como você queria? Gostou?’ Perguntou o barbeiro mostrando-lhe o espelho. ‘Não gostei não, seu Tito, mas não é para gostar. Quanto foi?’ ‘Três reais.’ Respondeu ele. ‘Isso é o que o senhor cobra dos homens?’ ‘E claro.’ ‘Então devia cobrar mais barato de mim, eu sou mulher.’ ‘E porque, se isso só me traz mais chateação?’ ‘Ai, seu Tito, o senhor só faz reclamar.’ ‘Olha quem tá falando!’ ‘Bom, eu esqueci o dinheiro mas mando o Leandro trazer mais tarde.’ ‘Ah. O coitado já está andando?’ ‘Coitado por que? Eu também não deixei o menino aleijado, que exagero.’ ‘Você é muito brava com esses meninos, minha filha.’ ‘Eu sou brava, e o meu pai, o que era então?’ ‘Era bravo também, e você não vivia criticando ele? Agora faz pior.’ ‘Pior não. Bom, seu Tito, o papo tá muito bom mas eu vou andando, ou melhor, pedalando.’ Quando saiu do salão todos os homens pararam de falar e vieram à porta do boteco, ficaram olhando estarrecidos por um minuto, sem nada dizer. Cleide levantou a cabeça careca, pedalou a bicicleta e foi para casa. Finalmente um dos homens falou ‘Mas essa Cleide é mesmo maluca, coitado do Francisco e da Arlete, o que fizeram para merecer uma filha dessas?’ ‘Filho não é questão de merecimento, a gente põe no mundo e pronto, eles saem do jeito que saem, não é culpa da gente.’ Opinou outro. ‘Vai ver que foi promessa.’ Emendou mais um. ‘Ou piolho.’ Disse outro e se puseram a rir.


Cleide chegou em casa e correu para o espelho, olhou para a imagem refletida e não se reconheceu. ‘Que horror, meu Deus!’ Pensou e chorou. Despiu-se e, ainda chorando foi para debaixo da ducha, pegou o shampoo e, quando se lembrou de que não precisava mais dele, lançou-o com força ao chão. Sentiu uma estranha sensação ao passar as mãos na cabeça. ‘Bom, eu quis rapar e rapei, não se pensa mais nisso, cabelo cresce de novo e inclusive, dizem que cresce mais saudável.’ Analisou.


Às seis horas Kátia foi esperar pelo pai na esquina para preveni-lo. Ele entrou em casa e, furioso, perguntou a mulher ‘Cleide, você ficou louca?’ ‘Eu não fiquei louca, eu sou louca, não é o que todo mundo diz?’ ‘Porque é que você fez isso?’ ‘Não-é-da-sua-conta.’ ‘Não acredito, só faz matar a gente de vergonha.’ ‘Vergonha porque? Tá com vergonha de mim, é?’ ‘Tô, tô com vergonha sim, tô morrendo de vergonha de sair na rua e escutar as piadinhas.’ ‘E você se importa com que os outros dizem?’ ‘Eu me importo sim.’ ‘Então é problema seu, meu filho.’ Gritou ela e o deixou-o plantado ali na cozinha. Ele passou a mão no cabelo, sacudiu a cabeça e disse para si mesmo: ‘Porcaria!’ ‘Voce quer tomar banho, pai?’ Perguntou Kátia e foi buscar a sua roupa limpa. Ele entrou no banheiro e passou muito tempo debaixo da água fria. Vestiu a camisa branca que Kátia escolheu para ele, pegou a bíblia e, sem dizer nada, saiu para a igreja.


Que armação do destino a teria um dia a uniu a esse ser tão diferente dela? Cleide tentava se lembrar mas tudo parecia tão longe. A juventude veio-lhe à cabeça como uma coisa besta, apressada. Foi aí que ela pôs tudo a perder. E foi por iniciativa dela mesma, nem podia acusar o pobre diabo do marido. Ele teria esperado mais tempo, o casamento provavelmente, mas ela queria experimentar e tanto fez que conseguiu. Um dia, ao invés de ir ao curso noturno foi para um canto escuro, não muito longe da colégio. Aquilo doera, não era bem o que esperava mas, ainda assim, voltou outras vezes ao mesmo lugar. Não precisou ir muitas vezes para que a menstruação atrasasse e os problemas começassem. Desesperados marcaram o casamento para a primeira data disponível e o evento com que tanto sonhara passou a ser uma corrida contra o tempo, um nervosismo, um não poder falar do que todos sabem, indiscrições dos vizinhos, ‘Mas a mais nova é que vai se casar primeiro?’ ‘Mas já? Eu nunca ouvi você falando em casamento.’ . Agora ali estava sem cabelo, sem paciência, sem vontade de continuar. Algumas vezes pensara em acabar com tudo tomando uns remédios de matar rato. Quer dizer, remédio não, veneno, né. Aposentara de vez essa idéia. Não podia pois afinal tinha tido filhos e agora precisava ir em frente, por bem ou por mal. Além disso, dizem, era contra a lei de Deus e, embora não tivesse muita fé, tinha algum temor. Nem gostava de pensar muito nisso pois se perdia. Há muitos mistérios nessa vida, por exemplo, por que é que uns nasciam no Rio de Janeiro e outros nasciam ali? Nunca tinha visto uma praia assim ao vivo e a cores, só na televisão. Falando em Rio de Janeiro a novela já devia estar começando. Ligou a televisão, sentou-se no sofá. Ia ver todas, das seis, das sete, das oito, das dez, quantas tivesse e esperava que a mãe não aparecesse para lhe aborrecer por causa do cabelo.

3 comentários:

Euzinha disse...

Eu já tinha lido este em algum lugar, mas os bons textos merecem uma nova leitura, ou várias (eu me senti tentada a divagar sobre as diversas leituras possíveis , não só no seu texto...risos...).
Dei boas risadas e ainda pude identificar as falas... Aquelas que só mudam de boca... O "discurso pronto" que nos ronda...
Vc já me conhece o suficente para saber algumas que já até comentei...
Excelente!! Sempre. Sempre.
Bj

Anônimo disse...

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Unknown disse...

Não entendi meu próprio comentário, será que foi da época da postagem original e se refere ao Balaio de Textos?